HUMANIDADE PRESERVADA

Cartas! E ainda se escrevem tantas! E lá se vão os envelopes devidamente preenchidos no rumo do destinatário. Nesse vai e vem de mensagens, muita coisa desviou-se , outras caíram em mão erradas e nunca foram entregues, outras ficaram ignoradas na caixa de correspondência e nem sequer foram abertas.

Em outros tempos as cidades pequenas nem tinham carteiro, precisava-se ir à agência saber de uma possível missiva. Chegar lá e sair de mãos vazias era uma frustração na minha vida de menina que vivia a escrever e estava sempre contando com ter nas mãos um envelope branquinho. Abrir devagarinho para não destruir o conteúdo e então saber novidades de uma amiga que se mudara há pouco para longe, podia ser um assunto para preencher dias de entretenimento recriando as frases e imaginando muito além do que fora dito. Mas as cartas que interessavam eram as dos rapazes. Elas podiam ser de um namorado,de um correspondente que se conseguia com uma amiga, mas especialmente, de uma grande paixão.

Há alguns anos atrás, quando minha mãe faleceu, eu não quis pegar uma caixa onde ela guardara muitas cartas de um período feliz de minha juventude. Depois, até pensei que tinham jogado no lixo. Há pouco tempo fiquei sabendo que uma de minhas sobrinhas, ao ver aquele verdadeiro "acervo" de um tempo em que ela não era nem nascida, ficara encantada com o fato e dissera que de jeito nenhum isso iria ser destruído. Fiquei a pensar por que essa menina resolveu salvar minha correspondência de trinta anos atrás. O que a levou a querer preservar registros de um passado pra ela longínquo da vida de uma mulher que não quis, ela própria, conservar tal preciosidade? Isso me fez refletir e lembrei que outro dia um senhor que administra o pequeno museu da cidade falou-me que muitos adolescentes fazem visitas frequentemente. Um dado interessante que, associado a este outro fato, talvez queira nos indicar que essas crianças e jovens quem sabe estejam à procura de referências mais ricas, pois nasceram num mundo acelerado, onde muita tecnologia não anda no mesmo compasso da valorização da vida. O que buscam nas velhas caixas de cartas antigas, na calma dos museus que acenam com tempos mais tranquilos? Na certa saber coisas de quando os avós moravam nas casas com os netos, ver aquele velho rádio, uma grande caixa de madeira que na sua simplicidade falava de divertimentos quase ingênuos, com as vozes de locutores para falar das coisas distantes num mundo que era vasto e pouco conhecido, sem as complicações da vida moderna. Ou aquela sombrinha cuja dona já morreu há anos e que ainda guarda no tecido sem cor alguma vibração de uma tarde alegre.

Mas principalmente sentir que suas vidas estão ligadas a um outro tempo, que eles não surgiram de uma máquina ultra- moderna, que afinal sua humanidade está preservada naquela velha casa, com todos aqueles indícios de que a cidade não apareceu de repente, que teve uma lenta história da qual as lembranças resistem em velhos baús, caixas com guardados de toda espécie, fragmentos da presença humana nas mais variadas formas. Os meninos precisam disso, precisam saber e mais , precisam sentir essa ligação com o passado, para estabelecerem um caminho seguro daqui pra frente ,sem lacunas e sentindo-se acompanhados pelas presenças que sentimos, por todo lado nos observando, quando andamos pelos museus. Uns olhos bondosos, curiosos, contemplativos, você nunca sentiu?

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 08/05/2007
Reeditado em 26/07/2008
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