ASAS

Uma manhã como outra qualquer, daquelas rotineiras e insossas, que tem a lentidão de todas as manhãs. O tempo é mais intenso e caminha mais rápido depois do meio dia; até esse horário, sempre me parece que ainda é ontem. Incapacidade de viver o presente, ou biorrítmo próprio?

A melodia antiga, revestida de um significado tão atual, repetia-se em meu coração "...take me back to my own love."

Enquanto buscava estímulo para a ação, inesperadamente, vi algo chocar-se contra a parede da sala e cair no chão, num frouxo ruído surdo. Uma borboleta? Não. Um beija-flor. Aproximei-me, cautelosa, para tentar pegá-lo, evitando assim que ele ficasse se debatendo e viesse a se machucar (outas vezes isoo já acontecera, a avezinha saíra voando assustada e eu tivera necessidade de ir atrás, tentando espantá-la para fora, abrindo portas e janelas). Para minha surpresa, ele permaneceu quieto, não só permitiu ser tocado, como também se aninhou em minha mão. Já fora de casa, em vez de voar, ali continuou, a me olhar.

Observei-o em sua beleza, em sua fragilidade, atenta ao colorido das penas, ao formato das asas e da cauda, à cabeça pequenina, ao longo bico entreaberto, mostrando a língua quase a lembrar um fio de linha; senti seus olhinhos a estudar-me, os pés procurando firmeza sobre meus dedos.

Eu permenecera com a mão no ar, práticamente imóvel, saboreando cada segundo da observação como se fosse o último, fugidio fluir do tempo num encontro tão especial. Arrisquei um movimento com a outra mão. Fiz-lhe um carinho, aceito sem susto, enquanto continuava a me olhar piscando, quase a dormitar. Eu hesitava entre o desejo de levá-lo para dentro, de retê-lo por mais tempo próximo a mim, agasalhado entre as mãos em concha, e é verdade clara, em minha mente, que é da natureza da ave ser livre e voar.

Talvez um dia, eu tenha experimentado a substância viva da barata, como G.H. ou talvez ela tenha, ao preceder-me, feito a prova, não somente por si mesma, mas também por mim, para poupar-me da experiência crua. O fato é que eu já pisara o solo sagrado e já vivera a "paixão segundo N.H.", sem morte, sem a substância viva a ser engolida, mas tão profunda e contundente que me encontrava pronta para entrar em comunhão com o beija-flor, purificada para unir meu sentimento ao dele, permitir-me a constatação (se a verdade não faz sentido, é da natureza humana buscá-la e expressá-la, num ensaio da revelação da vivência interior).

-Neste momento somos um só, sem separação. As criaturas de Deus estão tão unidas entre si, de alguma forma, como estamos nós agora, muito além do fato de suas garras estarem tocando meu dedo e se apoiando nele. Nossas sensações mais sutis estão sendo partilhadas; compreendo o seu medo. Após ter levado um um susto foi salvo por mim, sente-se seguro, confiante, e hesita, enquanto se refaz no conforto de uma situação segura. Sei disso porque também tenho medo e me agarro àquilo que oferece segurança; ambos, neste instante, sabemos ser muito difícil ter apenas a nossa intuição a nos guiar. Preciso, no entanto lhe dizer que se ficar parado, indeciso, e esquecer o instinto que tem comandado a sua espécie desde as sombras do tempo, não sobreviverá. Assim, é preciso buscar forças, esquecer o medo, tomar a decisão de voar. Quisera conservá-lo por mais tempo a meu lado, inebriada pelo contato com a expressão visível da beleza e perfeição!

Enquanto ajeitava suas penas desalinhadas, ele começou a piar, a emitir um som que era ao mesmo tempo uma resposta e um chamado, impulso de restabelecer a ligação com seu próprio meio. Triste, porém decidida, gratificada pelo êxtase da experiência, ergui um pouco mais a mão e ele voou.

-Lembrei-me de você, de quando abraçá-lo em despedida foi tocar suas asas de anjo, revelando tal intenção, foi ouvir você retrucar, com espírito, "cuidado para não amassar minhas penas", foi, numa resposta sincrônica, passar as mãos pelas costas como quem recoloca alguma coisa no lugar, agradecer a Deus a plenitude do encontro e partir.