Pimenta no olho do outro é refresco

Há mais ou menos um ano Camila foi convidada por uma prestigiada rede social para testar, junto com um grupo seleto de internautas, uma função nova nas postagens pessoais: o “Bem feito”. Todos na rede já conheciam o “Curtir”; muitos vinham solicitando uma opção para mostrar que não curtiram – como “Não gostei” ou “Não curti” –; mas ninguém até então tinha manifestado o desejo de ter disponível uma função específica para demonstrar prazer pela desgraça alheia – o que se entende, porque na cultura do “Todo mundo está feliz” espera-se que a inveja seja mantida em segredo, bem como situações desagradáveis que acontecem com a gente no dia a dia.

Mas aos poucos, por incrível que pareça, o “Bem feito” foi ganhando espaço na rede, assim como seguidores que, a exemplo do grupo contratado para fazer o teste, não se incomodavam em expor publicamente suas mazelas pessoais: acidentes, doenças, humilhações, dificuldades financeiras, angústia, depressão, etc. E pasmem: cada dia aumenta mais o número de pessoas curtindo a desgraça alheia, não só com o geral “Curti”, mas também com o “Bem feito”, que é mais específico e incisivo: vai direto ao nervo – como broca de dentista ou agulha de anestesia. Isso prova que o povo está perdendo a vergonha de se mostrar como realmente é, de revelar seu lado escuro, do avesso – um fenômeno que merece estudos mais aprofundados, com certeza.

Camila gostou muito da experiência. Começou tirando uma foto do resultado do seu exame de colesterol (que estava altíssimo) e postando-o na rede, com o comentário: “Não estou bem. Preciso fazer dieta”. Duas pessoas clicaram em “Bem feito”.

Uma das regras do teste era que Camila não se preocupasse com quem se mostrasse feliz pelas suas desgraças, que não consultasse seus perfis; mas ela não aguentou e consultou alguns; como o de uma ex-colega de colégio chamada Janaína, que achou bem feito ela ter tido diarreia e vomitado até as tripas depois de comer peixe estragado num restaurante vagabundo. Seu comentário kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk deixou Camila possessa de ódio. No perfil dessa ex-colega, Camila não encontrou nada de condenável ou vergonhoso que aliviasse seu desejo de vingança. Tudo ali parecia maravilhoso: viagens, namoro, trabalho, comidas exóticas, baladas, etc. Até que um dia Janaína entrou na onda e postou: “Meu namorado me trocou por uma mulher mais nova, mais magra e bem mais rica que eu”. Camila não clicou em “Bem feito”, mas ficou feliz em segredo.

Outro dia Camila brigou com o marido por causa de dinheiro. Estavam passando por dificuldades financeiras, mas mesmo assim ele não abria mão da sua cerveja, do seu cigarro e do seu poker a valer com os amigos. Ela então postou uma foto do carnê com 58 parcelas não pagas do carro importado que ele tinha comprado, com o comentário: “Falta comida em casa e meu marido pagando parcela de carro importado todo mês”. Trinta pessoas clicaram em “Bem feito”. Depois disso, milhares de carnês cheios de parcelas a pagar de motos e carros importados foram expostos na rede, numa impressionante revolta de esposas contra seus maridos deslumbrados. Essa reação inesperada surpreendeu a equipe de analistas da rede social, que ficou de queixo caído diante de tanta gente que se endividava comprando carros e motos caríssimos ao invés de investir, por exemplo, na educação dos filhos, pagando-lhes boas escolas, livros, cursos de inglês, etc.

Nas férias, Camila postou: “Viajando sem poder. Parece bom, mas não é. Hotel caro, mas sem nada de especial, cheio de gente exibida, se achando o máximo. Sorriso falso do Raul”, e uma foto do marido barrigudo na beira da piscina, tomando uma bebida azul cheia de gelo, com um enfeitezinho em forma de guarda-sol enfiado no copo (preço para turista: R$30,00 a dose). E seguiram outras fotos e comentários depreciativos da viagem: “Estou com urticária. Impossível entrar na água. Febre à tarde”, e uma foto dela com manchas vermelhas pelo corpo todo, com o marido ao fundo, na maior fossa, detestando tudo. Mais tarde, na enfermaria do hotel: “Pressão 18 por 12. Cabeça doendo muito, prestes a explodir”, e uma foto dela pálida, com olhos vermelhos e lábios feridos até a carne. Essa viagem foi muito importante para o experimento. 68 pessoas clicaram em “Bem feito”.

E o fenômeno se espalhou. Psiquiatras, psicólogos e sociólogos do mundo todo começaram a publicar artigos em revistas científicas sobre essa incrível mudança de comportamento dos internautas. Alunos de mestrado e doutorado investigavam as causas de uma redução significativa nas taxas de suicídio no mundo, associando-a, em parte, ao “Bem feito” da famosa rede social. E pode ser que tenha alguma coisa a ver mesmo... Ao compararem suas vidas horríveis com as de outros internautas, muitos dos potenciais suicidas certamente se sentiram aliviados ao perceberem que a vida não era um mar de rosas para ninguém, que cada um tinha os seus problemas, e resolveram pelo menos adiar um pouco o suicídio, ou talvez até desistir dele... Quem sabe?

Como bem diz o ditado popular: “Pimenta no olho do outro é refresco”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 06/05/2014
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