QUANDO ELE SE FOI

Quando ele se foi, eu não tive tempo para perceber. Minha filha delirava com seus quarenta graus de febre no sofá. Ouvi ele dizer alguma coisa, mas não prestei atenção. Tremia e discava apressadamente o número da pediatra, que pediu para que eu avisasse se o sintoma persistisse por mais de dois dias. Só me dei conta quando ela voltou para casa e sentiu falta do pai. Foi então que percebi os cabides solitários, dentro do armário vazio.

Quando ele se foi, eu achei estranho. Na verdade ele não foi de imediato, me deixou aos poucos. Os finais de semana decretados para namorar ficaram raros e as ligações quase não aconteciam. Liguei para o trabalho dele, mas me disseram que ele estava de férias. Fui até seu apartamento e encontrei uma morena alta, de cabelos compridos, circulando da cozinha ao quarto, vestida apenas com a camisa social dele. Dei meia-volta e entendi o recado.

Quando ele se foi, o fez por telefone. Eu estava no intervalo da aula de Cálculo III, no meio de um saduba de carne assada. Vi o número no display e ignorei a chamada três vezes. Na quarta atendi e recebi o comunicado. Desliguei, suspirei fundo e continuei meu lanche, pois já sabia a quantas andava aquele relacionamento de três anos, que eu não sabia se era um namoro, uma “ficada” mais longa ou uma atração. Estava mais preocupada com minha fome e com a prova que acabara de fazer.

Quando ele se foi, me disse entre os dentes e cheio de dedos. Quando ouvi a palavra “fim”, arremessei o celular longe, peguei o carro com sangue nos olhos, ultrapassei sete sinais vermelhos, atropelei um cachorro que atravessava a rua, parei na porta da casa dele, arrombei a porta, quebrei todos os copos e pratos da cozinha, rasguei seus ternos Armani, lancei porta-retratos contra a parede, quebrei os cds do Elvis, fui até à garagem e arranhei o SUV dele de uma ponta à outra, furei os quatro pneus com uma faca de cozinha, enquanto ele me olhava assustado. Ele não brinca mais, nem comigo, nem com outra.

Quando ele se foi, eu ajoelhei e pedi para que ele pensasse. Reconsiderasse os quase dez anos de casamento e os dois meninos que tínhamos. Mas já era tarde. A secretária do Catete era mais atraente que eu, que me virava em mil para dar de comer aos garotos, enquanto ele ficava pelos bares da vida, bancando churrascos para falsos amigos às minhas custas. Eu devia ter desistido quando ouvi ele sussurrar em ligações às escondidas, quando o segui e a vi com ela. Mas eu tinha duas crianças e um amor gigante por ele. Só que eu tenho limites e precisava dar exemplo aos meus filhos. Joguei a toalha, mesmo sentindo saudades.

Quando ele se foi, eu disse que me mataria. Ele riu, desacreditando. Falei que ia cortar os pulsos, atravessar a Avenida Brasil, encher a cara de Absolut e tomar vinte comprimidos para dormir. Ele não acreditou. Bateu a porta. Eu tenho medo de cortes, não gosto de álcool e a via expressa era muito longe da minha casa. Então, só me restou chorar até secar por dentro, reler cartas antigas, queimar algumas fotos e ouvir Someone Like You no repeat.

Quando ele se foi, não deixei barato. Contei no relógio: dezoito minutos de conversa e aquele blábláblá chato de quem tenta se desculpar, falando que rompia o noivado por não estar certo se queria casar tão cedo, aos vinte e três anos. Eu esperei ele terminar a ladainha quase mensal, fui para a casa, pintei a boca de vermelho, coloquei um vestido preto colado de costas nuas, um Louboutin poderoso, liguei para a Bia e pedi para que ela me pegasse às onze. Fui pra boate, rebolei até o chão, beijei uma boca diferente depois de anos beijando a mesma e acordei no dia seguinte numa cama gelada de motel, com um cara de costas tatuadas. Vinguei meu término na putaria.

Quando ele se foi, restou saudade. Eu fiquei horas olhando pela janela, me perguntando onde eu errei para ser descartada como se nada valesse. Liguei para algumas amigas, repetindo quinze vezes a mesma história, parando para chorar, sendo aconselhada a esquecer isso e seguir em frente. Mas era amor. Qualquer dia era poesia ao lado dele. Só que eu pensei que isso partia dos dois, mas não. Era um sentimento unilateral, só que eu estava tão cega que não percebi. Eu liguei, mas ele não me atendeu. Mandava e-mails, mas ele não respondia. Falei com a mãe, o pai e o irmão para entender o que se passava, mas ninguém soube me dizer. Perguntei se era um novo relacionamento, se eu estava feia e tinha engordado, mas no fundo eu sabia que não era isso. O sentimento acabou e pronto.

Ninguém está imune a um laço emocional desfeito. Pode acontecer como descrito nas entrelinhas que não percebemos no dia-a-dia, ou de surpresa depois de uma segunda lua-de-mel. Relacionamentos acontecem e “desacontecem”. Vem para fazer história ou apenas ficar na memória. E se não é mais bossa, com flores na janela e café na cama, o melhor é colocar a viola no saco, a cabeça no lugar e seguir em frente, pois nada está escrito, tudo é infinito.

No meu caso, quando ele se foi, eu recebi a minha carta de demissão do relacionamento sem alarde. Entrei em casa, joguei a chave na mesa e desabei no sofá. Olhei para o teto, refiz umas notas mentais. Alguém bateu na minha porta, mas ela só estava encostada. Era um novo amor chegando, cabeça e coração avisando: – Mulher, se prepare para viver tudo outra vez.

ARYANE SILVA
Enviado por ARYANE SILVA em 11/05/2014
Código do texto: T4802961
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