EBÓ POBRINHO

Quando eu cheguei ao Espírito Santo, em 1962, fui morar no bairro da Glória, em Vila Velha. Certa vez, indo estudar no Grupo Escolar “Naydes Brandão”, vi no chão, em uma encruzilhada, um pano preto e sobre ele uma vasilha com farofa, duas galinhas pretas, pedaços de fitas roxa, preta e vermelha, alguns charutos e uma garrafa de cachaça. Devo ter ficado com tanta cara de pateta diante do que eu via, que mal ouvi a pergunta de minha coleguinha: “Você nunca viu uma macumba?”. Diante de minha resposta negativa, passou a explicar-me algo que, em minha cabeça, não fazia sentido algum. Muitos anos depois eu aprendi um pouco mais sobre os fundamentos desse tipo de coisa com outros amigos, que entendem do assunto.

Hoje é muito fácil se informar sobre tudo, basta ter computador e acesso à internet e ao Google. Foi nele que eu descobri que, na verdade, “macumba” é uma espécie de árvore africana e também um instrumento musical utilizado em cerimônias de religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda. Com o passar do tempo, porém, o termo passou a referir-se a “despachos” ou “ebós”, que, segundo descobri, são oferendas feitas aos ancestrais ou orixás em agradecimento por bênçãos recebidas ou na intenção de resolver problemas, abrir portas ou conseguir oportunidades. Descobri, também, que os “despachos” feitos nas encruzilhadas (Iocais que representam dois mundos, o material e o espiritual) são dirigidos aos “exus”, entidades responsáveis por guardar os portais que ligam essas duas dimensões.

Essas recordações e pesquisas me ocorreram, porque voltei a ver “despachos” no bairro Três Barras, durante minhas caminhadas matinais. Diferentemente dos pares de brincos, vidrinhos de alfazema e garrafas de Cidra Cereser, tudo baratinho, que entregam para as “pombas giras”(Acho!) naquele local; fiquei mais apatetada ainda quando vi, em uma sexta-feira: um pratinho fundo que parecia ser de barro (descobri que o nome é “alguidá”, alguidar ou agdá), pouco maior que um pires, contendo um bife de hambúrguer, um cubinho de caldo Knorr ainda embrulhadinho, umas rodelas de cebola, uns caroços de milho e sete moedas (06 de dez centavos e 01 de cinco), tudo depositado sobre uma farinha amarela. Ao lado, havia uma garrafinha baby de cachaça e um cigarro Derby, pagado, mas fumado até a metade.

Fui procurar na internet quem era o destinatário desse tipo de ebó e qual era a intenção do remetente. Descobri que alguém quer proteção, que ela foi pedida a um exu, e acho que ele deve estar “puto da vida” com o pedinte. Penso isso porque não encontrei nenhuma receita de despacho feito com caldo Knorr e bife de hambúrguer, mas achei os ingredientes de um “padê” (comida de “santo”) que pode ter servido de inspiração para o “despachante” pobrinho: 01 alguidar grande, 01 pacote de farinha de milho amarela, 01 vidro de azeite de dendê, 01 cebola roxa, 01 bife de boi, 01 galinha preta, 07 charutos, 01 caixa de fósforos, 01 litro de aguardente, 07 pimentas vermelhas e 07 moedas de um real cada.

Tenho quase que certeza de que a entidade vai mandar o remetente se lascar ou vai inverter o feitiço, só de raiva. Não apenas por suprimir, reduzir tamanhos, qualidades e quantidades dos ingredientes, mas, porque, o remetente/despachante não sabe(m) se comunicar.

Quer saber como conclui isso? No dia seguinte, ao passar por perto do referido despacho, vi que algum animal (cachorro vadio, talvez) comera o bifinho, o cubinho de caldo de galinha, e espalhara a cebola, o milho, as moedas e parte da farinha, deixando à mostra um papelzinho sob uma farinha amarela. Tive dúvidas se deveria pegar ou não, pois como diriam os falantes de espanhol: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay!”

A curiosidade foi maior que o medo: respeitosamente, pedi licença à entidade, expliquei que eu sou tirada a cronista, peguei a tal mensagem e em vão tentei lê-la: a letra, a lápis, era ininteligível, típica de pessoas iletradas. Até pensei que o texto estava escrito em outra língua, mas, repentinamente, percebi que se tratava de uma oração em que alguém pedia “ÇOCORO”! Nesse momento eu entendi por que o “ebó” tinha sido tão pobrinho, devolvi o bilhete ao mesmo lugar e prossegui.

Mas... continuo achando que o “santo” não vai desculpar o pedinte não.

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 18/05/2014
Reeditado em 21/05/2014
Código do texto: T4811188
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