Último dia

Hoje recebi um e-mail inusitado, com uma pergunta que me tirou do ar por alguns segundos. Quem o escreveu foi uma senhora que tinha perdido o filho em um acidente de carro, indo ao trabalho, no início do mês passado. Primeiro, ela desabafou sua dor e, pelo peso de suas palavras, cheguei a imaginar que ela tenha desabado em chorar ao contar essa história para mim. Até eu, do lado de cá da tela, não segurei as lágrimas.

Depois de trinta linhas cheias de um vazio que nada é capaz de preencher quando se trata da morte de um filho, ela me perguntou: “Aryane, sei que você deve ter muitas coisas para fazer, mas como você sempre fala de luz, me dê uma e responda (se puder): o que você faria se soubesse que só te resta um dia para viver?”.

Larguei o macarrão no fogo, que obviamente virou uma papa de carboidratos e corri para o computador para responder, já que no celular a preguiça em digitar impera (no meu caso).

Aqui está a minha resposta:

Oi Sônia,

Depois de muito pensar no que me perguntou, estou aqui para tentar escrever algo que te conforte e diminua um pouco esse buraco que se abriu no teu peito, no teu chão e na tua rotina.

Bem, se fosse meu último dia de vida, a primeira coisa que eu pensaria em fazer seria acordar antes das seis para ver o dia amanhecendo. Eu, preguiçosa de carteirinha, não me dou a esse luxo gratuito. Mas o faria para guardar a imagem mais bonita de todas, já que nossa mente nada mais é do que um porta-retratos.

Faria um café bem quentinho e, ao invés das torradas sem graça e com gosto de papelão, comeria um belo misto quente, com três fatias de queijo, sem a preocupação diária com meu colesterol.

Deixaria a louça na pia e colocaria Pharrell Williams para tocar alto no rádio. Mas não podia ser qualquer música, tinha que ser Happy. Essa música, além de ser eleita a melhor de 2014, ainda tem uma melodia que levanta o astral; música para ouvir no repeat (se você não a conhece, peça para um neto adolescente baixar no 4Shared, eles conhecem bem essas tecnologias de hoje. Vocês me dará razão quando ouvi-la).

Compraria presunto de parma, muçarela de búfala, azeite balsâmico e todas essas coisas que eu evito comprar por achar caro e prepararia um prato gourmet, com um bom vinho e de sobremesa um petit- gateau, que eu nunca comi na vida e que sempre me faz salivar quando vejo na televisão.

Eu pegaria minha agenda de telefones e ligaria para todos os parentes que eu ignorei anos a fio pelas mágoas causadas. Daria meu perdão de coração e os desejaria sorte na vida.

Entregaria em mãos aquele brinquedo que comprei para um dos sobrinhos e que está largado em cima do armário há cinco anos e postaria todas as cartas escritas e não enviadas, por medo de parecer cafona em tempos de Facebook e Gmail.

Iria ao teatro assistir uma comédia besteirol e subiria uma escadaria que tem aqui no Rio de Janeiro e que dá acesso ao bairro de Santa Tereza, só para matar minha curiosidade de vinte e oito anos e saber o que tem do outro lado daqueles azulejos lindos e coloridos. Voltaria para casa lendo Neruda, o máximo de páginas que eu conseguisse, já que nunca li nada dele até hoje.

Veria “Diário de Uma Paixão” com pipoca e guaraná gelado, escreveria minhas últimas palavras e as dedicaria a amigos queridos. Telefonaria para todos os amores que tive (só os que valeram a pena, claro) e agradeceria por eles terem me transportado para um sentimento tão único.

Ao cair da noite, com um céu estrelado e já me preparando para o fim, eu elevaria meus pensamentos ao Criador e citaria todos os motivos pelos quais eu era grata, fazendo orações pelos que ficariam e deixando claro a dispensa do meu anjo da guarda, para que ele passasse a proteger outra pessoa.

E, nos minutos finais, eu ajudaria alguém no Tocantins. Uma mulher que nunca vi na vida, mas que me conhece pelos escritos que espalho pelo mundo. Daria um abraço virtual nela e pediria para ela continuar, pois certamente é isso que o filho dela queria também.

Arremataria a resposta, escrevendo: que a luz que eu tanto digo, deixe de ser palavra e vire sua companheira.

ARYANE SILVA
Enviado por ARYANE SILVA em 20/05/2014
Código do texto: T4813396
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