Pia foi pro Céu

Pia foi pro Céu







A questão, e preciso falar assim, como se o bonde estivesse andando, é que você não me pediu ordem. Se tivesse pedido, eu diria: em maio não dá, porque faço aniversário. Em junho nem pensar, pois a questão do evento futebolístico traz, brrrrrr, promessas. Ah não, julho, hummmm, negativo, pessoas entram de férias e, supondo que estaremos de férias, podemos aproveitar o ensejo pra papear.

Seu último e-mail foi em agosto, dizendo que estava tudo às mil maravilhas.

Bom, em agosto também não dá, visto ser o mês de aniversário de Nossa Senhora.

Você chegou na minha vida em fevereiro de 2008. Com um ponto de exclamação no fim da frase, disseste: ei, rapaz você é uma boa surpresa. Estava eu então numa transição e, cruzes, parece que estou em transição há mais de meio século. Ou numa transição ou numa entre safra. Acontece que quando você chegou, minhas, a saber, solidão, penúria, tristeza, desesperança, encontraram um novo alento. Dias difíceis em que eu não via a hora de me encontrar contigo e digo assim porque assim se passava em meu íntimo: tratava-se de um encontro que se renovava a cada dia. A cada encontro.

Em março do mesmo ano você me fez um favor que me tocou profundamente e então parecia, perdão, refraseando, ficou tudo igualzinho a letra daquela música cujo nome nunca soube: “é de manhã, vem o sol mas os pingos da chuva que ontem caiu, ainda estão a brilhar, larali lara lá”.

Assim me expresso porque o bonde está andando e nossa amizade, rapidamente, subiu um ponto.

Ah, voltando, não senhora, em setembro não vou deixar porque no mês seguinte minha filha faz aniversário. Então, inútil pedir em setembro e em outubro.

Mas, em outubro do ano passado você me mandou uma carta e, lembre-se, fiz tudo como você mandou. Era sobre o nosso, hã, o nosso lance. Já que você nunca contou pra ninguém também eu que não vou abrir o bico. Só dois meses depois ruminei que você, talvez, estivesse me omitindo coisas. Sei que, quando cheguei no correio com aquela tranqueirada toda, aflito, pensando se tinha ou não esquecido alguma coisa, antes da menina fechar o Sedex eu peguei uma folha de papel e garranchei: abre o teu e-mail!!

Na minha cabeça eu pensava o seguinte: bom acho que ela se encheu, deve ter sido muito chato aquelas sessões todas em BH, acho que está dando um tempo, etc. Nesses idos eu me encontrava no olho do furacão. Porque tem sido sempre assim, e quando assim não é permanece a transição ou a entre safra. São, hã, estados permanentes da minha existência e, toda vez que olho para trás tenho vontade de chorar, isso quando não tenho vontade de rir. Depois passa.

Olha, em novembro eu diria: não dá, desculpa, mas não dá mesmo. Você é muito legal, a diferença que você fez na minha vida foi e continua - fundamental, mas em novembro não vai dar porque, não sei se você sabe, a república foi proclamada nesse mês e um tsunami de boatos assola o país apregoando que, findos os eventos futebolísticos e políticos é bem possível que mudemos de nome, ou de continente talvez.

Ah, em dezembro, pois é chegamos em dezembro. Impossível, aniversário de J.C.

Bem, você não me pediu permissão e eu não tive a chance de te contar que a última palavra é sempre do homem. Já te explico. Foi, pois, na virada de 2013 para 2014 que fiquei sabendo, via um talento do RL, sobre os desdobramentos das sessões que você fazia em BH. Chateado, ruminei sobre nossas comunicações nos meses anteriores: uai?

Nesse instante, permaneço no mesmo local em que estive em 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Incrível pensar sobre a constância da sua presença aqui nesse meu modesto quarto e sala, em especial eu não diria, mas em relevo, no biênio 2009/2010, quando fizemos o nosso lance. Falar sobre isso daria um livro...

Também não te daria permissão em janeiro por tratar-se de período muito alegre e colorido e em fevereiro jamais, afinal, nossas bodas de 7 anos. Março tem as águas e em abril o dia da mentira.

Então, caso não inventem outro mês, a permissão está negada, peremptoriamente.

Tu permaneces, como a tua Atena.

Em hipótese alguma farei disso um drama pois urge sobreviver, tampouco farei cultos, odes, epitáfios, pois tu permaneces, com teu legado, não vou deixar palavras como saudade, falta e dor entrem no meu recôndito, não vou e fim de papo, minha descrença nessa despedida é maior que os 7 mares todos juntos e multiplicados, muito maior, foste, ou antes, mudaste de local sem minha ordem e sem saber que a última palavra é sempre do homem. Sabe o que ele diz? Ele diz: Sim, Senhora.

Te mando um beijo de até logo e deixo abaixo uma de suas obras, que está longe de ser um retrato de sua vida, por sinal um colosso que marcou muitas outras vidas, inclusive a minha. Mas é, sem sombra de dúvida, um 3x4 do seu talento, que não cabe em página nenhuma nem em lugar algum, mas está aqui no meu coração.

“Atena

Que eu devia ter nascido homem
só porque penso bem,
são murmúrios.

Não sou homem, sou mulher.
Filha de meu pai, nasci sem mãe,
em eterna juventude.

Daí talvez meus modos
um tanto quanto destemperados.

Pendurei nas paredes uma fileira de homens coagidos
pelas ondas cerebrais que minha boca emitiu.

Envolvi meu corpo em couraças protetoras
como camadas de cebolas reluzentes de ouro, e, com um grito selvagem, armei-me para a vida sem precisar de lágrimas ou olhares de peixe-morto.

Construí lanças sonoras que penetram fundo pelas frestas das rochas do deserto por onde ecoam as águas refrescantes
saciando minha sede de justiça.

(Maria Olímpia Alves de Melo)




(Imagem - Capa de “O Círculo Finito” - romance - 228 páginas -  escrito em parceria com Maria Olímpia Alves de Melo, primeira edição dos autores em 2013)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 24/05/2014
Reeditado em 07/04/2021
Código do texto: T4818488
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