#SomosTodosGarrafas

O Léo, meu marido, é uma das pessoas mais sábias que eu conheço. Nunca escrevo tão claramente porque ele detesta exposição. Mas hoje vou quebrar o protocolo.

Estávamos conversando à tarde, eu mais chorando do que dizendo algo coerente, reclamando pela milésima vez no mês sobre as injustiças do mundo e tudo aquilo que me afeta (e olha que são poucas coisas que tem esse poder). Falei da minha vontade de jogar tudo para o alto e voltar a ser a Aryane professora, dona de casa e estudante de Letras. Ele me ouviu, com um levantar de sobrancelha. E só por isso já sabia que vinha alguma preciosa lição pela frente.

Mas, ao invés disso, ele me desafiou. Dando o último gole na sua cerveja de frasco verde, ele a colocou no chão e me disse:

- Ernest Hemingway ganhou um Nobel de literatura com um livro simples, que foi O Velho e o Mar. Euclides da Cunha ficou na memória por retratar tão bem a vida no sertão. Nelson Rodrigues, o cotidiano. Eu sei o que você é e o que está deixando na vida das pessoas, mas te lanço um desafio, no qual o resultado será a confirmação das suas dúvidas. Quero que você escreva sobre essa garrafa.

Eu achei o pedido estranho. Como aquilo poderia me provar alguma coisa? Parecia mais um entrevista de emprego, onde o dono da empresa pede que você venda um produto para mostrar sua habilidade em negociar. Achei que seria fácil, mas confesso que já apaguei umas dez linhas até agora.

Pensei em começar relatando meu único porre na época da faculdade, mas acho que ele ficaria meio enciumado em saber onde a bebedeira foi parar. Quis filosofar sobre algo sobrenatural, dando propriedades humanas à garrafa, colocar nome, diálogos e tudo, mas o medo de ser prolixa me fez escolher outro caminho.

A verdade tem a medida necessária e não dá voltas.

Eis aqui minha contribuição.

Eu olho para essa garrafa e lembro de mim. Primeiro, porque adoro a cor (embora eu tenha editado a fotografia). Segundo pela sua condição, quando cheia: tão dura por fora e tão mole por dentro; líquida, para ser mais exata. Molenga, como eu. Tem gente que me olha de primeira e se afasta, acham que eu vou morder, mas quando conhecem o meu interior (privilégio de poucos), confirmam que há nele é infinitamente melhor. E no caso das cervejas, melhor ainda se ela estiver gelada. É o que dizem. Sei lá, não bebo.

Talvez, algum dia eu tenha sido uma garrafa PET, mais maleável, fácil de ser ludibriada, reciclável e tolerante, mas hoje não sou mais. Sou dura mesmo, fecho a cara, digo não à hipocrisia, debocho do que se faz de ridículo, porque essa é a faixa amarela que limita a chegada das pessoas. Um aviso silencioso, que alerta: meu coração não é mais lugar para oba-oba, bagunça, furdunço. Se não souber chegar, nem entre. Se eu deixar entrar, será para sempre, até quando você quiser (e fizer por merecer).

Sou pequena como essa long neck, sem perspectiva para quem quer muita coisa, tão comum que sou encontrada em cada esquina, em outras cores, tamanhos ou modelos. Mas só eu sei o prazer que posso proporcionar a uma pessoa. Sei bem a diferença que faço para uns e a indiferença que provoco em outros. Não crio expectativas, quem está comigo e “me leva pra casa” o faz por saber que eu posso ser boa companhia.

Mas hoje, e de uns dias para cá, estou como essa, vazia. Sinto que alguém aproveitou o meu melhor e caiu fora. Eu preciso entender essa dinâmica descartável que as pessoas se utilizam para se desfazerem de alguém. É assim agora? Usou, não prestou, jogou fora? E os momentos de alegria? E as gargalhadas fora de hora? O ombro amigo, foi esquecido? As conversas, o afeto, tudo? Bom, se for assim, me esqueçam e adquiram a próxima. Fico aqui em silêncio, até perder a validade numa boa.

Não, definitivamente, não quero ser uma garrafa.

ARYANE SILVA
Enviado por ARYANE SILVA em 24/05/2014
Código do texto: T4818840
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