Sananda e a Estrela

Sananda e a Estrela






Sananda nasceu com uma música, no começo da madrugada. De manhã comungou, pra se encontrar consigo, ou para ter forças para isso. Um padre lerdo impunha pausas enervantes. Foi lhe dada a orientação para compartilhar.

Quando atravessou a rua esbarrou em Natalie, esbaforida, atrasada para abrir a banca. Ela lhe perguntou para onde ia, ele respondeu “para a Estrela”, ela quis saber de onde vinha, ele fez com a cabeça um gesto indicando o local, “passei alguns anos lá, onde tive a vida familiar”. Natalie estava contente, contou que na sexta viu a Taça, linda, reluzente. “Isso aqui é uma crônica?” inquiriu ela mexendo no molho de chaves. Sananda deu de ombros, depois comentou ao léu que se uma crônica for uma sopa de palavras, então é uma crônica. “O que há na Estrela?”, indagou Natalie, recheada, sorridente. “Parece incrível”, disse Sananda, “na Estrela todos estão focalizados no que chamam de Irmandade do Tudo”.

Sananda estendeu a mão para o táxi que passava. “Por que a Estrela?”, fez o taxista, como que para puxar conversa. “Porque...”, hesitou ele em responder, “os habitantes se parecem bastante uns com os outros, algo que por si só elimina a banalidade da comparação física”. Conversaram por entre ruas e avenidas, pontes e pontilhões, viadutos e vielas, o taxista lhe disse que seu carro é um fórum ambulante de discussões, especialmente sobre a vida, Sananda replicou que veio ao mundo para partilhar e que qualquer pessoa que quisesse mergulhar na compreensão da vida era seu amigo, sua família.

Deram voltas pela cidade, que aos domingos parece uma coisa que não existe.

Saiu do táxi sem pedir troco e caminhou um bocado até uma loja de conveniência. Sananda sentia fome, catou duas coisas na gôndola e dirigiu-se ao caixa. Uma mulher abarrotada de compras, ao vê-lo carregando uma sacolinha, convidou-o a passar na frente. Ele de pronto aceitou, e como que cutucado por um estalo, disse: “você se parece muito com uma pessoa que salvou minha vida. Às vezes gostaria de ir até ela para agradecer de novo, pois acho nunca foi suficiente, mas, depois... ”. Ele não completou a frase.

A menina da registradora solicitou 95 centavos, a mulher abarrotada mediu-lhe da cabeça aos pés e não se conteve:

- Você é o tal que vai para a Estrela. Às vezes eu sonho com isso. Pode me dizer o que existe de tão especial nesse lugar?

- As noções – respondeu ele - Por exemplo, somente as almas mais sensatas têm a permissão de conviver com as crianças.

Sananda entrou e saiu de casa várias vezes, numa delas o porteiro lhe perguntou se seu nome era mesmo esse e ele disse que hoje, particularmente, poderia ser. Como a portaria estava vazia, resolveu se estender um pouco, relatando mais ou menos dessa forma: fui escolhido para contagiar com leveza os saturados com o peso do mundo.

O porteiro quis saber, pois lera não sabe onde, que na Estrela inexiste trabalho mecânico e primitivo, que aliás por lá a labuta ocorre de acordo com o desejo individual e o caminho do espírito.

- Há uma energia sobre cada idéia – ponderou Sananda – ainda não estive lá, mas também li tratar-se de local livre de preocupações relativas à sobrevivência física, segurança, aposentadoria, pensão, solidão...

Ficaram os dois absortos, vendo os carros passar na avenida, até que chegou a síndica, inquieta porque ouvira falar da Estrela e das intenções de Sananda, de se mudar para lá e de cara, sem disfarçar sua curiosidade, perguntou sobre os chefes.

O porteiro e Sananda se entreolharam. Este último muito cordato, narrou brevemente que os líderes se dedicam à projeção de pensamentos, algo que requer um esforço concentrado e habilidade de ser extremamente enfocado.

- Desenvolveram centros especiais de treinamentos para ensinar esta habilidade – finalizou ele.

Ela bateu com o cabo do guarda chuva na mesa do porteiro e desferiu enérgica:

- Existem síndicos nesses centros?

Todos sorriram mediante o que se presumiu ser um trocadilho.

Sananda saiu para a avenida, caminhando lentamente. Lá estava Natalie, falando para todos sobre a Taça. Ele parou por ali, indeciso, ela comentou que de manhã parecia tão decidido, ele retrucou que de tarde sente-se assim, talvez seja cansaço.

- E a Estrela?

Ambos se olharam. Parecia óbvio, mas ele se rendeu ao prazer de por em palavras:

- Logo mais vai despontar.

Se despediu e voltou para casa. Há tempos Sananda repousa de noite. E de manhã, assim que abre os olhos, renasce.



(Imagem: Gustav Klimt)






 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 01/06/2014
Reeditado em 07/04/2021
Código do texto: T4828553
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