Na escadaria da catedral

Naquele sábado de outono, a conversa fluía macia e amigável e sem nenhuma pressa. Eu ainda não conhecia, naquele início dos anos 80, uma pessoa tão impecavelmente ética na sua juventude como o Paulo.

Rapaz humilde, negro, filho de costureira, de pouco estudo formal, mas com um conhecimento profundo do humano como eu jamais vira. E sabia muito sobre a fé, sobre a gratidão, alteridade. Com ele ouvi pela primeira vez que a gente deveria renunciar com alegria frente alguém necessitado de amparo, de tempo ou de afeto.

Conhecedor profundo da doutrina espírita, lá estava o Paulo, como eu, plantonista numa entidade de prevenção do suicídio. Voltávamos de uma reunião de estudos na rua Abolição. Foi ali que comecei a aprender a ouvir, a dar o ombro, a disponibilizar tempo para os desesperados. Até então, com meus vinte e pouquíssimos anos, eu não esperava me deparar com aquela realidade social tão dura, tão corrosiva, de uma cidade que se jacta de cultura e de assombro, de arte e de abandono, de sofisticação culinária e de milhões de estômagos a roncar sem solução.

Tive o privilégio das boas leituras, de fazer ali amizades sem nenhuma pretensão de afetos mais intensos. Tempo de conversas edificantes quando o trabalho nos dava alguma licença.

Da rua Abolição, no meu querido Bixiga, fomos caminhando até o centro. De lá eu tomaria o ônibus para o Cambuci com mais facilidade.

Naquela simplicidade de uma amizade sincera, nos sentamos um pouco na escadaria da catedral. E a conversa com base na filosofia humanista corria solta e com seriedade. E ele ia me falando da importância do casamento de vida inteira, da lealdade, da alegria do encontro, da superação dos milhares de obstáculos que certamente viriam, do poder extraordinário de uma união com elevadas doses de fidelidade. Sim, eu estava para me casar e ele ali, ao meu lado, como conselheiro, me falando da importância do respeitar sempre, das construções a serem feitas, da presença constante de um na alma do outro. Isso era sagrado. E eu pensava : “como o Paulo sabe tanto???”

Fiquei sem resposta para sempre.

Foi bem ali que percebi a alegria de uma nova amizade. A serenidade daquele carteiro me fez ter paciência – e ainda falta muita – para com as coisas da vida.

E o equilíbrio espiritual do moço era tal que ele não viu uma cena, que me provocou náuseas. Diante de nós, um homem de aparência humilde parou e se pôs a olhar para o Paulo com tal malícia, exalando sordidez, esperando uma oportunidade para falar alguma obscenidade que me insultou.

E ele esperava o meu amigo parar de falar sobre a vida para entrar na conversa e aquilo me provocou agonia porque eu estava suspeitando que, o que viria, iria me ofender terrivelmente. Passados alguns minutos, o homem foi embora porque não teve espaço. Simplesmente Paulo não o viu, enquanto eu já estava desesperada e muito inquieta, imaginando o que viria daquele “ser de luz”.

A grandeza do Paulo era tanta que ele não percebeu, à sua frente, o que seria cruel, vulgar, moralmente hediondo, asqueroso. Preferiu permanecer falando do bem, dos bons princípios, do amor de Deus e da eternidade da vida.

Obrigada, Paulo. Aprendi muito com você. Obrigada mesmo, para sempre, pois o que você me ensinou tem vida e perfume passadas três décadas. A aprendizagem é uma bênção, como foi o nosso convívio naquele centro de atendimento aos suicidas no centro de São Paulo.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 05/06/2014
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