Uma chuva forte de verão caía na Costa da Lagoa para alívio geral em tempos secos. Em volta de uma távola amigos jogavam conversa fora, enquanto recolhiam para dentro pequenas porções de peixe frito e cachaça amarela. 

Vez por outra emergia de um mar verbal de bobagens algum assunto mais sério e a reunião ganhava ares de diálogos socráticos, comer, beber e inventar filosofia. 

No momento em que o garçom enriquecia o Banquete com uma travessa cheia de lula frita, um dos convivas saiu-se com esta: “sou fã do Mujica”, e teceu um rosário de qualidades do ex-presidente do Uruguai, sua simplicidade, seu caráter, seu desprendimento material, o pequeno sítio em que ele continuou morando mesmo sendo presidente, o fusca na garagem, nenhuma regalia ou mordomia, enfim um estadista que chegou ao poder e ficou sendo ele mesmo, homem simples, reto, servindo apenas um senhor, o povo. Consenso geral e cada qual dos ouvintes procurava revelar mais uma qualidade ou feito do velho Pepe. 

Outro citou o exemplo de Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul, aposentado e vivendo o padrão de vida de sempre, 50 anos morando no mesmo apartamento em edifíco sem elevador, sem carro, uma caminhada diária no bairro conversando com todos e tomando chimarrão, os mesmos valores, hábitos simples. 

Um terceiro apontou o Papa Francisco e sua revolução de humildade cristã contra os vícios e ornamentos do Vaticano. E então fez-se um silêncio revelador. Era como se todos tentassem, em vão, lembrar outro político fora da influência de Mamon, o deus do ouro da Bíblia. Mas aí o diálogo tomou outro rumo. 

Um dos amigos entrou na conversa lembrando um trecho de “A República” de Platão, que conta a história de Giges, um pastor muito conhecido na antiga Atenas por sua honestidade. Certa feita, andando pelos campos, Giges encontrou um anel e colocou-o no dedo. Por acaso descobriu que girando o anel em um sentido, ficava invisivel, girando no outro voltava a aparecer. Gostou da bricadeira, e um dia passando por uma padaria resolveu comprar pão e percebeu estar sem dinheiro. Lembrou do anel e pensou: “o mundo não vai acabar se eu ficar invisível e levar uns pães”, e assim o fez. Na certeza de absoluta impunidade cometeu muitos outros delitos até dormir com a rainha, matar o rei a assumir o poder.

No final do relato o amigo lançou um desafio: “Se vocês achassem o anel, que fariam"? Gozação geral. Mas a história é apavorante e nos deixa nus. A certeza absoluta da impunidade liberta as feras e a moral desaparece. Talvez lendo este diálogo de "A República", Maquiavel, Hobbes, Freud, Nietzche entre outros, lançaram a indefectível suspeita sobre os humanos e a política perdeu sua aura. 

Nós brasileiros assistimos uma crônica diária de políticos e seus anéis. Muitos não aprendem a girar e o objeto acaba aparecendo no bolso ou na cueca. 

O caso das jóias é um exemplo do mau uso do anel. O general, agente da invisibilidade do ex- presidente, errou o giro e as jóias apareceram brilhantes para todo o Brasil. 

Mas nada pode ser generalizado. O autor Eduardo Gianetti, por exemplo, autor do livro "O anel de Giges: uma fantasia ética", jurou que se achasse, não usaria o anel.

Existem sim pessoas incorruptíveis, muitos Mujicas anônimos habitam o Brasil, mas é o controle rigoroso; a fiscalização; a mudança das leis que tornam impunes os brancos colarinhos; a partipação cidadã e a reconstrução das instituições do Estado via uma revolução republicana, que podem tirar o país do ranking da corrupção global. 

O mal é civilizatório, o dinheiro governa o mundo, Ladislau Dowbor que o diga. 

O Brasil vive ainda os tempos da monarquia pois além da corrupção farta, uma nobreza apartada da sociedade usufrui dos privilégios do Estado. Isto também é corrupção – legal e imoral.

O país das desigualdades é o segundo do planeta que mais gasta com as mordomias de seus agentes nos três poderes e exército. O corporativismo de Brasilia é blindado pelos donos do poder. 

Agora a confraria de amigos estava no barco voltando para casa, apreciando o encontro de águas do céu e da lagoa. Alguns talvez pensando que naquele exato instante milhares estariam girando o anel da impunidade e assaltando os bens coletivos.

luiz cezare vieira
Enviado por luiz cezare vieira em 09/06/2014
Reeditado em 16/03/2023
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