Conversas celestiais com a minha avó

Poucos momentos da minha vida foram mais delicados como aquele da partida da minha avó. Mulher sábia, serena, de uma fortaleza inquebrantável, ela ainda me faz muita falta.

Eu gostava muito de ouvi-la contar casos sobre a sua história de vida. De quando saiu de Minas, mudou-se para São Paulo no final da guerra. Os seus primeiros tempos na Cantareira e o respeito pelo Mercadão. E sempre tinha o que contar sobre a sua pensão na rua Abílio Soares. Ela adorava ir passear na Sears com o meu avô e, certamente, se conformava em não poder comprar aquilo que era exposto. E como ela gostava de partilhar essas memórias nem sempre tão doces, mas carregadas de açúcar na sua fala de mulher que tinha uma invejável capacidade de viver!

Sou muito grata à minha avó, que me ensinou muito da vida e eu só não sou pior graças a ela, que me ensinou o amor ao próximo, o respeito, a valorização do trabalho, da família e do estudo.

Nos últimos anos da sua vida, totalmente impossibilitada de enxergar fisicamente (porque, de alma, ela enxergava tudo), nós líamos para ela, contávamos como o mundo estava caminhando. Conversávamos muito sobre os descaminhos da política nos tempos da ditadura. E ela tinha o hábito de dizer que o povo não valia nada. Eu não gostava.

Prestes a pegar no sono, ainda naquela fase de vigília, parece que nessa noite eu pude contar para ela algumas coisas do presente e ela também queria saber, tinha curiosidade de saber como o mundo estava andando.

- Vó, Quantas saudades!!! Como a sra. está bem, enxergando tudo...

- Enxergando tudo, bem. Graças a Deus, eu vejo tudo.

- Onde a sra. está?

- Resolvi dar um passeio e parei aqui, numa nuvem. Estou olhando prá baixo tentando entender alguma coisa, mas está tudo tão complicado...

- Está mesmo, vó. O mundo não vai bem das pernas. O Brasil está de arrepiar.

- Mas por que, meu Deus?

- Vó, a gente continua com muitos vícios do passado. Lembra da corrupção, aquela ladroeira sem fim ? Tá tudo aí, do mesmo jeito. É de dar medo.

- É mesmo???

- Pois é, vó. Mas tem uma coisa muito boa prá te contar – e outra péssima.

O que é bom é que muita coisa avançou. Lembra de quando eu era moça, queria estudar e só havia a USP prá eu entrar porque senão o dinheiro não daria nem prá matrícula? Hoje existem facilidades: tem o PROUNI, por exemplo, que é um caminho prá quem não tem recursos poder cursar uma faculdade. Já pensou que legal, vó, poder estudar numa faculdade mesmo sem dinheiro?

- Mas isso é muito bom, gente!

- Hoje, vó, existem bolsas que auxiliam pessoas em situação de muita pobreza. E esses pobres recebem um valor – pequeno – mas recebem todos os meses.

- Então não precisam passar por tudo aquilo que eu e o teu avô passamos?

- Não, vó. Mudou. Prá comprar casa ficou mais fácil. Tem até um programa, novo ainda, que beneficia quem é pobre a comprar casa.

- Meu Deus, que maravilha! Eu e o teu avô trabalhamos tanto e nunca tivemos a nossa casa.

- Vó, tem até financiamento popular prá comprar eletrodomésticos , essas coisas... Lembra quando a sra. ficava muito feliz quando a mãe comprava alguma coisa nova?

- É mesmo. Era muito bom.

- Vó, hoje existem tantas facilidades que a sra. não imagina.

- Mas então as pessoas estão bem.

- Não, vó, as pessoas estão péssimas.

- Mas não pode. Como assim, péssimas?

- Vó, as pessoas foram ficando infelizes, choronas,profundamente maldosas, reclamonas, cheias de não-me-toques. Acham que tudo sempre está ruim demais. Debocham, fazem comentários medíocres e fazem caretas. Prá sra. ter uma ideia, hoje começou a Copa do Mundo e ela está sendo sediada aqui no Brasil.

-Copa no Brasil? Nossa, que bom! Eu me lembro daquela de 1950...

- Nem queira lembrar , vó, daquele momento em que o Gighia fez o gol e o Barbosa teve que se conformar...

- Mas como pensaram em fazer a Copa no Brasil?

- Vó, lembra do Lula?

- Claro que me lembro. Eu fiquei muito brava quando o teu tio Carlos resolveu votar no Collor em 89 e foi um horror só. Ele tinha que ter votado no Lula.

- Pois é, vó. Foi o Lula que tratou de criar condições prá trazer a Copa prá cá. E as Olimpíadas também. Não foi nada fácil enfrentar outros tantos candidatos de peso e de importância econômica e política.

- Mas que coisa boa! Quanta gente com possibilidade de trabalho, de poder sustentar melhor os filhos e...

- Peraí, vó. Não é assim.

- Como não?

- Não, vó. O povo só quer reclamar. No ano passado parece até que baixou o santo e uma parte enorme da sociedade foi prá rua reclamando de tudo, fazendo paralisações, quebrando, vandalizando e tendo piti. Agora, é pior .Gritaram porque não queriam Copa e isso e aquilo. Lembra daquela síndrome de vira-latas que povo tinha, vó? Ainda tem.

- Que coisa!

- É greve prá tudo quanto é lado. Tudo de boicote ao Mundial. Querem mostrar pro mundo todo que...

- Mas o povo não tem vergonha na cara!

- Vó, a sra. não imagina como está isso aqui. Gente moça, jovem mesmo, tendo chiliques e pouco ou quase nada fazendo para o bem do próximo. E nenhuma preocupação com o país.

- Eles estão fazendo o que, então?

- Comprando celular, i-phone, i-pod, i-pad...

- O quê, bem?

- Nada, vó. Deixa prá lá.

- Mas o que eles querem?

- Vó, eles querem viver num padrão FIFA.

- O quê, bem?

- Vó, é meio complicado explicar. Eles querem tudo de mais luxuoso, de mais fino, de mais caro...

- E o que eles fazem prá conseguir isso?

- Olha, vó, eu acho melhor deixar isso prá depois. Tá meio complicado entender.

- Mas o que eles estão pensando?

- Em reclamar, vó. Hoje, por exemplo, em plena abertura da Copa, sendo exibido pro mundo todo, eles, em coro, xingaram a presidente, inclusive na hora do Hino Nacional.

- Xingaram???

- É, vó. A sra. percebeu que eu falei A presidente?

- É mulher, bem?

- É, vó. Sua conterrânea.

- Que maravilha... Mas, bem, acho que eu não entendi. O país avançou, a ditadura acabou, as pessoas têm acesso a coisas que nós nunca pudemos nem pensar. Tem até faculdade onde não se paga mensalidade, benefícios para pessoas muito pobres, até casa ficou mais fácil comprar... e o povo está achando ruim? Não respeitam a presidente e nem o Hino Nacional?????

(Nessa hora eu achei que a vó já estava duvidando).

- O povo está imbecilizado, vó. Toda hora só critica, debocha e xinga. E acha que sabe tudo, que pode tudo.

(Quando a minha avó fazia algumas reflexões, ela tinha o hábito de colocar o “fura-bolo” na ponta do dente canino direito. Quando ela tirava o dedo dali, a conclusão já estava feita).

Pois ela, lá, sentadinha na nuvem, “balangando” as perninhas, tirou o dedo do dente e, na sua filosofia certeira e absoluta me questionou:

-Bem, lembra quando eu falava que o povo não valia nada e você não gostava?

O silêncio ecoou pelo firmamento...

Palmas para a minha avó. Clap clap clap.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 12/06/2014
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