Aulas de piano

Naquela tarde eu comecei a pensar que caminhar pela vida seria possível. Eu poderia, triunfalmente, começar a ser.

O piano, inerte e fechado num canto da sala. O piano! Quantas vezes eu passava por ele sem olhar, correndo para não dar tempo de sentir as lembranças e o som enjoado do solfejo da minha própria voz, as notas que eu não sabia decifrar das partituras, a cobrança para ser, um dia , como Pedrinho Mattar. Eu corri muitas vezes e até tirar o pó e passar lustra-móveis era uma tarefa, para mim, dolorosa e aflita.

A Marta resolveu me pedir umas aulas de música e disse que me pagaria por isso. Amizade um tanto efêmera, a Marta tinha problemas auditivos – quem sabe esse foi um dos motivos que fez com que ela acreditasse em meus dotes musicais.

Acertamos então: por mês o valor das aulas seria de 15 cruzeiros. Um montante camarada, afinal, ela teria que pedir o dinheiro para a mãe, uma enfermeira sorridente e, de tão sofrida por um casamento desastroso com um homem constantemente dado a bebidas, não conseguia prestar atenção a coisa alguma.

E lá foi a Marta, sentadinha na banqueta que girava, ia tentando com uma professora totalmente desqualificada e com a sublime pretensão de começar a trabalhar. Tínhamos apenas treze anos e um universo gritante de sonhos e desejos de viver que transbordavam pelas ruas do nosso Cambuci.

E, sorridente, a Marta tentava ler as notas e se localizar no teclado, mas logo percebeu que não conseguiria ler as partituras, os sinais e claves que iriam além da nossa simplória compreensão.

Terminado o mês, ela, muito correta, efetuou o pagamento combinado.

Com o dinheiro na mão, o meu primeiro dinheiro, a alegria me provocou alguns pulos exultantes diante da minha avó, que, satisfeita, sorria sentada no seu pufe verde , ao lado da vitrola Telesparker. Ela me disse:

-“Pega esse dinheiro e se benze . Assim, nunca vai te faltar”.

No primeiro sábado depois da apoteose, minha mãe e eu fomos à cidade especialmente para que eu pudesse comprar um par de sandálias. Comprei uma sandália linda – a mais linda que já tive – em plena rua Quintino Bocaiúva. Cor creme, com um verniz suave, anabela.

Foi um momento brilhante, carregado de simbolismo e de crença na minha ingênua capacidade de ensinar alguma coisa a alguém. Eu pude comprar o meu par de sandálias! Até porque o respeito que tínhamos para com as dificuldades da família era tamanho que não pedíamos nada. Às vezes, um doce. Outras vezes, um único sorvete. Roupas somente o extremamente necessário.

A primeira grande vitória da minha vida, na minha quietude, mergulhada na minha timidez! Alvíssaras! Eu consegui! A certeza de que eu poderia dar conta de mim, um dia. O sentimento de que eu seria capaz de fazer a minha trajetória, não precisar dar satisfações, abrir estradas com os meus próprios passos: foi o par de sandálias creme, da rua Quintino Bocaiúva, que me fez abrir mais os olhos e perceber a grandeza da liberdade.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 15/06/2014
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