Para ela

Para ela



Obrigado por ter telefonado e mais, obrigado por sua amizade. Humm, eu meio que canso de falar com as paredes. Sonhei com você, hoje. Você, minha avó, meu tio acho que estava, não sei, acho que sim. Eu tinha ido fazer alguma coisa com o seu carro e, adivinha, fui parar numa delegacia. Bom, não vejo propósito em renovar minha carta, já que não tenho carro. A turma era bem legal e o delegado chamava-se Paulo, que é o nome de um carinha lá do pedaço que tá mal, a mulher separou dele, a gente tá tentando ajudar, mas sem muito sucesso.

Ontem meu outro computador pifou. Simples assim. Uma pena, porque era um bom processador de texto.

Minha avó falava muito no sonho e o tal delegado Paulo, bastante risonho, dizia que só liberava o carro se você aparecesse. Que jeito, se você mora em outro estado?

Não, eles não ligaram, não ligam nunca e eu cansei de ligar, de deixar recado, mandar torpedo, pedir um pouco de atenção. Não apenas cansei como tenho receio, fundado, de que a ligação se torne mais uma chamada perdida, e pior, sem retorno. Tenho medo de ficar mais magoado ainda. Também não me vejo merecedor disso.

Ah, o delegado me disse que eu necessitava de mais Ahmyo. Fui pesquisar - não é bem uma palavra. Assemelha-se a um estado de ser. Trata-se da absoluta confiança – não no mundo, não em outras pessoas, não em divindades ou entidades, em nada disso, nem em "aliens" – mas apenas EM SI MESMO. É uma confiança absoluta, incondicional e não mental em si mesmo. Ahmyo é o eu puro, absolutamente puro.

Quem me dera....

Peço desculpas se domingo meu e-mail pareceu indelicado. Domingo foi um dia de cão, chovia sem parar e eu fiquei muito, mas muito preocupado mesmo. Aquilo foi virando uma bola nos meus miolos e eu não conseguia ver uma saída, talvez por não estar fincado no instante. O ego, essa indústria de críticas, julgamentos, mágoas etc., só existe no passado ou no futuro. Nunca no presente.

Antes de dormir, agradeci, porque dia de cão mesmo está na pele dos que aparecem nas notícias, uma pior que a outra.

Ontem, voltando pra casa, cerca de 21: 15h, ruminei no metrô repleto de jovens que um dia, obviamente noutro plano, vou tocar para eles. Por isso continuo estudando, se bem que estudei pouco hoje, meus dedos doem e eu hei de arranjar um espaldar confortável para minhas costas.

Sim, o livro ficou bonito, o único retorno que eu tive foi do Moura, que disse que está gostando e já leu dois terços. Fiquei surpreso porque ele nunca fez o menor comentário sobre qualquer coisa que eu tenha escrito. Enfim, já sabemos que não vai ser um sucesso, mas é como dizia não sei quem: pior do que não ter conseguido é a frustração de não ter tentado. Acredite se quiser, não reservo a menor sensação de soberba quanto a isso. Só precisava ver pronto, encadernado, encapado, palpável, nem que seja pra guardar na prateleira, começar o próximo e suspirar, quem sabe dentro de 376 anos, aproximadamente, alguém vai achar, ler, e depois exclamar:

- Cruzes, que porcaria, quem é esse mala? Credo, se morasse na Rússia se chamaria Malovisky.

Bem, já se faz tarde, hora de pegar a mochila e zarpar para a Vila Sésamo. Estou fazendo um bico como dublê do Caco.

A vanguarda dos Comunicadores Celestes aconselha para o período que vai de agora até o meio do século, mais ou menos, bastante cautela, visto que a quantidade de movimentação invisível rolando não é brincadeira. Dizem ser o momento do perdão incondicional, da reverência mútua e de recordar que estamos no meio da maior metamorfose que a humanidade na Terra, e todos os seus reinos, algum dia já experimentaram.

Ah, te contei da tia? Pirou na batata, coitada, está confusa e se entupindo de porcarias. Acho que tem a ver com a menopausa que, segundo ouvi dizer, relaciona-se com a vitalidade sexual de Isis se transformando num cântico mais de senhora, que não precisa ser sexual, e que se torna uma energia maternal.

Enfim, ela toma todas essas coisas, porque não sabe se deve ser atraente ou maternal, esperta ou masculina, nem mais nada.

Olha, agradeço a sua amizade, isso, como sempre, é praticamente a prova de que tudo acontece na hora certa. Mais dia menos dia baixo aí na sua praia e vou te fazer uma "paelha". Esse prato, culturalmente dizendo, era feito por homens, para seus amores. Vem daí o nome, "para ella".

Bem, ainda não somos amores e eu mal manejo uma colher. Mas tudo na vida se aprende.

Por hora é só, mais um beijo no seu coração.



(Imagem: Alphonse Mucha,1860 – 1939, was a Czech Art Nouveau painter)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 25/06/2014
Reeditado em 04/04/2021
Código do texto: T4858642
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