NOSSA ETERNA E DIVINA INFÂNCIA

Quando eu era criança, éramos pobres, mas éramos felizes; mamãe trabalhava muito a fim de que meus irmãos e eu tivéssemos um bom estudo, cursássemos uma boa faculdade e conseguíssemos um bom emprego, tudo o que ela quis ter, porém não pode, pois minha mãe teve que largar à escola aos nove anos para trabalhar com meus falecidos avós naquela época. E como ela já, ainda pequeninha, trabalhava demais para o sustento de sua própria família.

Lembro-me dos natais lá na antiga casa: não havia grandes comemorações, suntuosos banquetes, contudo meu irmão mais novo, a quem sempre tanto amei mais do que tudo em minha vida, dormíamos muito cedo, afinal mamãe nos dizia que o papai-noel iria entrar pela chaminé, e depositar silenciosamente presentes ao lado de nossas camas (e olha que nunca houve chaminé alguma em nossa casa). Era um quarto com meus três irmãos, e tentávamos não agarrar no sono para ver como era mesmo o tal do papai-noel; felizmente dormíamos, e pela manhã, ao abrir os olhos, lá estava meu irmão já de pé, segurando uma caixa embalada com um plástico colorido, com fita vermelha ou azul, sorrindo pra mim, e ele sempre me sussurrava, pra não acordar meus outros irmãos, a seguinte frase: “O papai-noel esteve de novo aqui neste ano, e a gente de novo não o viu”. Eu levantava, e olhava, ainda sonolento ao lado de minha cama onde ficava uma mesinha com um pequeno abajur, e lá estava o presente, o meu presente, mal desconfiava eu que que era minha mãezinha que sempre comprava-os e os depositava perto da gente quando o sono e o cansaço e a ansiedade nos faziam dormir tão cedo. Sim, minha mãe fazia das tripas coração, trabalhava tanto a fim de que tivéssemos um natal pelo menos parecido com o das outras crianças. E depois quando abríamos os presentes, era sempre alegrias e surpresas, e corríamos por toda a casa tão cheios de vida e de sorrisos nos olhos e na alma, e corríamos para junto de nossa mãe e sempre lhe confessávamos: “mamãe, mamãe, o papai-noel não esqueceu da gente de novo”; e minha mãe, tão guerreira e terna, nos abraçava e nos prometia que ele nunca esqueceria de nós.

Meus pais iam à noite para a missa, que naquela época começava um pouco tarde. Meu irmão e e eu também rezávamos em casa para que o menino Jesus pudesse abençoar a nossa família, para que Deus nos ajudasse nas tantas tribulações e aflições que minha família passava e sofria. Às vezes eu me perguntava por que o menino Jesus não conseguia fazer todas as crianças felizes, por que o menino Jesus, mesmo sendo menino e ainda assim Deus, por que Ele não acabava de uma vez por todas com os sofrimentos que as criancinhas do meu bairro, da minha cidade, e do mundo enfrentavam todos os dias. Por que menino Jesus?”

Nos dias comuns, típicos, ou talvez atípicos, não sei bem, meu irmão tentava me ensinar andar de bicicleta, tentava me ensinar a como utilizar e manusear uma pipa com nossos amigos que tínhamos em nossa rua. Ah meu Deus! Éramos todos amigos, não havia ideias de superioridade ou de inferioridade entre nós: brincávamos de futebol, às vezes invadíamos o quintal dos vizinhos para furtar inocentemente algumas frutas, como caju, pitombas, seriguelas, tamarindos, goiabas, e era sempre uma aventura, e mesmo que depois nossos pais soubessem e apanhássemos deles, depois contávamos as histórias e estórias uns aos outros, e ríamos tanto juntos sentados na beira da calçada, contemplando o céu estrelado, ou em cima de cajueiros enormes. Sim meu Deus! Como era divino, divertido e mágico ser criança a cada dia.

Nas férias, era quase sempre a mesma coisa: nunca viajávamos, nunca passamos férias em outra cidade: ficamos em casa mesmo, e inventávamos tantas aventuras: no sábado éramos piratas a lutar contra robôs que queriam dominar o mundo; na segunda, éramos funcionários de um grande Banco ou de uma grande Empresa; na quarta, jogávamos futebol, nem que a bola fosse feita com sacolas e um monte de papel enfiado no interior das sacolas. Às vezes, nossas irmãs também brincavam com a gente de cabra-cega, de esconde-esconde, e aqui e acolá caíamos, machucávamos os joelhos, os cotovelos, as pernas, e nossos pais nos davam um bronca enorme, mas logo esquecíamos. Lembro que minha mãe detestava quando a desobedecíamos quando a chuva era bem forte, pois ela temia que pudéssemos ficar doentes, mas sempre queríamos correr com nossos amigos pela rua toda; meu irmão mais velho construía com isopor pequenos barquinhos, e nós os colocávamos à beira da calçada, ou numa outra rua em que houvesse uma ladeira, assim os barquinhos feito de isopor navegavam mais velozmente, e nós corríamos atrás do barco, fingindo que éramos grandes capitães náuticos, e eu me lembrava nessas horas do autor Júlio Verne, e dos filmes que eu tanto assistia com meus irmãos e irmãs, e depois procurávamos uma biqueira bem forte para ficarmos debaixo, sentindo o peso forte da água da chuva colidir em nossas cabeças, e cantávamos as músicas que mais faziam sucesso nas emissoras de rádio ou na televisão. Passávamos e sofríamos tantas lutas em nossos lares, cada um de nós, ali, reunidos, cada um com seus problemas, com suas faltas, com suas ausências, com suas próprias feridas que escondíamos em nossos corações com vergonha talvez, entretanto éramos como um rebanho de ovelhas desgarradas pela vida, todavia éramos ainda assim crianças felizes, anjos da guarda um do outro. Sim, havia amor e sinceridade em cada gota de chuva, em cada gota de lágrima, em cada gota de conversas ou de silêncios que gotejavam em nós, ou que despencavam de nossos corpos e de nossas almas.

Hoje não sou mais criança, não sou mais aquele menino, mas confesso: queria sempre sê-lo. Hoje, eu olho para as crianças e não vejo mais nelas próprias quase nenhuma infância; eu mal consigo sentir, quando as observo, qualquer cheiro primaveril de brincadeiras, de pureza, de ser realmente uma criança onde antes reinava castelos de imaginações, crianças transbordantes de inocências e cheias de areia na mão e nos pés, cheios de cumplicidade, de sentir aquela alegria que nem consigo exprimir por meios de palavras, porém tal felicidade, a qual desconhecia a si mesma, era tão presente em nossos corações, mesmo quando brincávamos com uma bola feita com sacos plásticos e papeis.

Eu vejo hoje em dia somente crianças já adultas, ou melhor, adultizadas, e meu coração se enche de tristeza e de desilusão; crianças que preferem o mundo virtual a querer correr na rua a fim de tentar empinar uma pipa, rezando para que a força do vento aumentasse, olhando ao redor e vendo as pipas de seus próprios amigos lá no alto do céu, tentando tocar e acariciar a imensidão do azul celestial, assim como fazíamos e como éramos, e a gente sentia com fé, sem nem saber o que era, ou o que simbolizava teologicamente, ter “fé”, nós sentíamos uma comunhão com Deus, com a vida, com o céu, com as nuvens, com as estrelas, com os nossos sorrisos e lágrimas, com a terra dura e áspera em que pisávamos, porque embora fôssemos pobres e humildes, nos sentíamos ricos e felizes em sermos crianças de verdade, e mesmo depois de tanto aprontar¸ depois de invadir os quintais alheios para catar e furtar frutas tão inocentemente, e depois que a chuva parava e víamos o próprio menino Jesus correndo e perseguindo lindas borboletas em cima do arco-íris, depois de sujar os calções e as blusas jogando futebol na areia e sabendo que provavelmente levaríamos uma surra, e depois de tanto brincar, de suar, depois de inventarmos tantos contos de terror e de aventuras que nunca havíamos sequer vivenciado, voltávamos com uma comunhão ainda mais forte, intrínseca, inefável, sagrada, porém sempre simples, humilde, verdadeira, real, e genuína que havia em sermos eternas crianças divinas e humanas que sempre fomos e éramos.

Eu já não encontro nada disso nas crianças virtualizadas e precoces de nosso mundo pós-moderno; na realidade, eu vejo muitos Tablets e celulares, mas poucas alegrias e crianças, eu vejo pouca felicidade original e veraz nas mãos e nos olhos dessas crianças, e meu coração já não sabe mais para que lugar eu devo olhar, ou para que lugar eu posso encontrar uma criança humana brincando de amarelinha, ou fingindo com convicção ser o Superman, ou outro super-herói, usando tão somente a imaginação, ou um pedaço de giz, ou cavalgar pelos quartos e salas da casa com um cabo de vassoura nas mãos como se fôssemos o xerife de uma cidade do velho oeste brasileiro combatendo o crime, ou pegar uma pequena toalha e amarrá-la no pescoço e que servisse como uma capa simbólica para combater os vilões, e destruir o mal do nosso mundo.

Retorno, TRISTE, para o meu quarto e sempre trazendo a infância nos bolsos de minha calça e em meu coração pueril, pois naquela eterna época o mundo não precisava se vestir e nem se cobrir com mais e mais lençóis e máscaras tecnológicas do que, e de quem não se é e nem se precisa ser; quando eu era criança, o mundo, assim como nossos corpos pequenos e cansados, todos iam dormir e sonhar com grandes dragões e ferozes gigantes em terras aladas, e o sangue vívido e úmido da existência e da vida fluía em nossas almas tão castas, tão humanas, e tão divinamente infantis e sapecas, pois o próprio mundo se alegrava em morar, em sorrir, em pular corda, em ser criança, e em expandir todos aqueles rios de alegria e de pureza dentro de nossos íntimos.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 02/07/2014
Reeditado em 02/07/2014
Código do texto: T4866620
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