Tempos tenebrosos virão

TEMPOS TENEBROSOS VIRÃO

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.07.14)

Encontraram-se no local combinado: um desvão meio sombrio, tanto quanto possível afastado de ouvidos humanos e olhos tecnológicos, como o Chefe falou e ele pensou que fosse brincadeira, o Chefe sempre tem lá seus momentos de galhofa, de pilhéria. De gozação, mesmo.

- Percebeste bem?

- Perceber? O que?

- O que estão fazendo, oras! - o Chefe parecia nervoso, apreensivo, preocupado.

- Fazendo onde, Chefe?

- Por aí. Por tudo - fez um gesto vago e redondo como se quisesse abarcar e indicar o mundo ou algo vasto e muito grande.

Pensou um pouco antes de responder, tentando avaliar melhor a situação, procurando entender com máxima clareza a que, precisamente, o Chefe se referia:

- Bom, pelo que sei, estão instalando os cabos da nova rede de banda larga, telefonia e...

- A-há! Isso é o que "tu" pensas! - enfatizou o "tu" como se enfiasse o dedão indicador no meio do peito do interlocutor. - Isso é o que todos pensam! Será que ninguém está percebendo, será que ninguém lê sobre conchavos e tecnologia?

- Gostaria muito de saber, Chefe.

- Olha, quero dizer, escuta - e cobriu a boca com a mão, feito técnico de futebol à beira do gramado, para impedir a leitura labial. - É o plano, um plano de escala nacional. E escala nacional no Brasil nunca é coisa pouca, vai aí pelo menos de 30 a 40% de propina. Todos os locais terão esse mesmo sistema que estão instalando aqui, nas nossas barbas - e deixou escorregar a mão, cofiando a própria barba, muito bem cuidada, por sinal.

- Sério, Chefe? Essa história começa a me deixar preocupado, inquieto.

- Pois é, pois é como te digo: daqui para a frente vamos precisar ter muito cuidado com tudo que falarmos: tudo será ouvido, tudo será gravado e as conversas serão todas cruzadas. Nada escapará do conhecimento deles, imagina! Imagina quando todo o sistema estiver implantado, funcionando no País todo?

- Caraca, Chefe, não tinha pensado nisso!

- E tem mais: sabes de quem é a empresa - a mão sempre cobrindo os lábios, exigindo idêntica postura do outro, a fim de não ser delatado por palavras alheias - que está fazendo o serviço?

A primeira revelação

- O dono da empresa, Chefe? Não faço a menor ideia - quase cedeu ao gracejo do "não faço a melhor ideia"; ia pegar mal.

- A empresa é a - abafou tanto a voz que ela não saiu e o outro ficou sem saber o nome da fatídica companhia prestadora do serviço. - Pois essa empresa é exatamente aquela.

- Aquela?

- Sim, aquela, a empresa fajuta que saiu na imprensa, foi escândalo no "Jornal Nacional", capa da "Veja", alimentou jornais por semanas. Vem aqui perto - pediu, e aproximou a boca da orelha do outro, tapou dos dois lados essa via de comunicação entre ambos e disparou: - o dono é o filho do Cara! Percebes?

- Humm...

- Todo o Brasil instalando, sendo obrigado a instalar o sistema, e o dinheirinho caindo no caixa da família. Dinheirinho pra eles, podres de ricos que já estão. Mas tem mais.

- Mais, Chefe?

- Tem.

A grande revelação

- Já tremo de medo e angústia, Chefe.

- É bom ir acostumando mesmo. Porque, daqui pra frente, só vai fazer piorar.

- Piorar mais ainda?

O Chefe quase esboçou um sorriso, mas seus olhos pilheriavam, degustando a impressão que causava, certo de que estava a ponto de convencê-lo da Grande Verdade:

- O esquema, meu amigo, o esquemão tal como foi montado desde lá o final do século passado e que começa agora a ser executado.

- Meu Deus! - benzeu-se três vezes feito jogador entrando em campo.

- O uso do capitalismo em proveito próprio! O capitalismo desenvolve a tecnologia, coloca os cabos a funcionar e serve assim ao comunismo.

- Ao comunismo?!

- Sim, o plano é o controle total da sociedade brasileira e a implantação do comunismo, do qual jamais conseguiremos nos livrar depois que essa rede começar a operar.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"