História com livros

HISTÓRIA COM LIVROS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 27.07.14)

De vez em quando alguém me pergunta pelo Manoel Osório, manda um beijão para o Manoel Osório, quer saber como vai o Manoel Osório. Agora mesmo é o André, amigo da Lúcia Helena, que declara de público, pelo "Facebook": "Grande abraço, e por favor mande lembranças ao Manoel Osório!" Quer dizer: duas palavrinhas para mim, oito ("oito!") para Manoel Osório. Tá certo que somos amigos, mas não vivo com o Manoel Osório, cada qual tem sua vida e seu endereço eletrônico, costumamos passar muito tempo sem nos ver, conversando através de mensagens eletrônicas pois, descobri agora, ele detesta telefones. Usa, mas detesta. Assim, nunca disca (?) para falar com alguém.

Há quem venha me dizer que anda com saudades do Manoel Osório. Outro dia, uma garota - uma mulher, convenhamos; um mulherão - confessou que sonha com Manoel Osório ao menos três vezes por mês. O tipo da informação idiota, essa. Talvez sirva de alguma forma para ele, mas não tem a menor serventia para ninguém mais. Não sei por que as pessoas, assim tão interessadas nele ou saudosas dele, não lhe escrevem diretamente. Fico eu aqui, estúpido, dando explicações e mandando recadinhos para marmanjo.

Como qualquer pessoa, Manoel Osório às vezes é um baita de um chato. Em outras ocasiões, é um cara bem legal até. Verdade é que ele se revelou um respeitável coletor, colecionador e contador de histórias, e aí é que reside a força maior do vínculo que mantemos: de forma interesseira e egoísta, valho-me dos casos dele, muitas vezes omitindo seu nome, para construir as historietas que espalho pelos meus textos.

Diferentemente de mim, entretanto, ele detesta livros, que manuseia apenas por obrigação (como toda a sua família, ele é formado em Direito; ao contrário de toda a sua família, ele é o único Osório que não voltou para sua cidade no Sul do Estado). Ele não entende como, sem a obrigação de fazê-lo, alguém senta-se por meses a fio para escrever um romance. Considera isso uma absurda perda de tempo, pois a vida continua a correr do lado de fora e o sujeito fica ali, encaramujado, escrevendo feito um demente.

O uso dos livros

Sua avaliação do ato da leitura é muito semelhante à da escritura: desperdício de vida. De maneira facciosa, parcial e distorcida, Manoel Osório costuma usar como principal argumento precisamente o meu exemplo: enquanto ele sai por aí, conversando, vendo e viajando, eu me nutro dos casos que ele me conta, ao invés de buscar minhas próprias histórias. E completa, resumindo sua filosofia:

- Se é para lidar com livros, se for absolutamente imprescindível tratar com eles, que se faça como um velho amigo meu, para horror supremo de um bibliófilo vizinho dele: compra o livro apenas e tão somente se estiver afim ou necessitado de lê-lo, lê a obra, a mulher lê e, ao fim e ao cabo, o velho volume usado e amarrotado vai para o cesto de jornais e revistas. Na semana seguinte, o caminhão do lixo some com ele.

Um homem e seu lema

A medida do seu caráter egocêntrico, megalomaníaco e autossuficiente (ele que não me oiça, pois ler-me não há de) pode ser tirada pelo lema que adotou outro dia, bem recentemente. Até então ele era simplesmente Manoel Osório, com nome e sobrenome, e isso era o bastante. Mas ele cismou de que não, de que precisava ornar o seu nome com os adornos de um título, quase como se uma aura de nobreza. Passou então a assinar-se "Manoel Osório (do Sul para o Mundo)", uma idiotice sem mais tamanho para comparar.

No entanto, para mim isso tem um belo valor, posto que ele se leva a sério e efetivamente sai de viagem, nacional ou internacional, de quando em vez. Na volta, eu é que renovo o estoque de histórias da minha adega em geral combalida. E saio deitando ficção enquanto saboreio um vinho que ele me presenteia.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"