O poço
Eis que um dia cometi um infortúnio, pensar a vida de forma a ir contra nossa forjada complacência. Eis que uma hora eu percebi o poço. Já gastei uma hora olhando esse escuro buraco desconhecido. Qual será a profundidade? Engraçado, ele parece olhar de volta para mim. Nessa hora, que não é bem uma hora, mais um acumulo de infinitas horas, é intensa a vontade de nele mergulhar. Ver, sentir, saber… Clarear! Não?
Em um repente filosófico, olho para a vida e ela não é mais uma planície plana, na redundância da expressão, composta apenas pelo que vemos, pelo que nos é mostrado enquanto estamos sentados no jardim dum confortável condomínio. Há um poço aqui. Um poço sem fim, que nunca nem esteve tampado para não ter sido notado… Notei-o. E agora? Terei como evitar a repugnância de viver só no raso? De repente, o poço esteva ali, gritando ao meu lado. De repente, continuar a viver na superfície da vida é um vazio sem fim, um desgosto sem fim, um fim sem começo, um começo sem meio, um meio apagado. Ou melhor, diariamente ignorado. Eis que no meio é onde se encontra o favelado, o sertanejo sem água, a criança da esquina, o cachorro leproso, o sacizeiro sem comida, o desgovernado, o esquecido, o abandonado, e mais trocentos infortunados. O meio estaria no poço? E eu, onde fico?
Calma, calma… Pra que pensar nisso? Vamos é viver só o começo, visando o fim, por que o meio, ah, o meio… Eu tive foi a sorte de nascer no raso! É sorte, não é? Não? De que importa?! Pra que tantas perguntas?! Tantas indagações… Pra que se preocupar? Lutar, então? Faça-me rir! Quanta onipotência querer as coisas diferentes. Mudar o mundo! Mudar as coisas... que coisas? Vidas, pessoas, governo… Do que eu falava mesmo? Do meio. Que meio? Natal passou, entreguei uma cesta básica no orfanato aqui ao lado… Foi bem mais barato que o peru da ceia, o qual, por sinal, sobrou, estragou e foi parar no lixo… Mas, afinal, isso basta. Sou um cidadão honrado.