Relíquias de um caçador de sonhos

...tenho um escudo, um crucifixo, um CD do Renaissence e quatro caramelos e tu o que tens? É necessário fazermos o nosso inventário antes que a chuva chegue e nos deixe com sono.

Lembro-me que quando estávamos na Praia de Paraíso, embaixo dos coqueiros, próximo a casa de farinha, costumávamos fazer círculos de fumaça com os nossos cigarros, enquanto a garrafa de vinho não se esvaziava, enquanto ainda tínhamos pique para mais uma rodada de álcool e conversa. A chuva próxima, naqueles meses de março e abril, era o que tanto queríamos. Praia deserta, mar agitado, paisagem de cinema a nossa frente, olhos atentos aos pendões de caroá, tudo ao nosso dispor e nós que não vivemos aquele passado hippie podíamos nos deixar levar por aqueles ventos.

Corríamos a preparar a nossa refeição no alpendre da casa de taipa, precisamente ao fundo da casa, pois nas laterais estavam nossas redes, nossas relíquias juvenis, nossos alforjes de caçadores de sonhos. Quando as coisas melhoravam podíamos contar com um pequeno botijão de gás, equipado com uma grade de apoio para a panela. Era daquela preciosidade que saiam cozidos arroz, feijão, legumes, sopa, cuscuz, café, leite. Ah! Nem nos importávamos com carne, peixe ou galinha. La estávamos nós com a filosofia na ponta da língua, com as nossas lições de bem viver, nossos gestos amáveis, nossos castelos inexpugnáveis, mundos que construíamos com a força mútua da ajuda de um ao outro. Houvesse a folia que houvesse, nossos corações estavam imersos nesses nossos carnavais. Vento, mar, chuva, banho de bica e cumplicidade fraterna.

Ah, e para que a luz? Podíamos enxergar claramente a alma do outro. Aquele brilho já nos era suficiente! Mas a luz da fogueira era importante pois ali os violões soavam irmanados com nossas vozes. Nossos rocks, baladas e canções impregnavam a noite de liberdade, conduziam-nos a nossa certeza visceral de sermos jovens com paixões incorruptíveis. Nossos cigarros mais uma vez nos traduziam, testemunhavam o que nos eram importantes àquela época. Eram bem vindas as chuvas e os pés na lama, poesias que lavavam a nossa alma.

Eram tão boas as nossas caminhadas! Conhecíamos a vida um do outro durante aqueles valorosos quilômetros da prainha de Suape até a Praia de Paraíso - nosso reino sagrado. Não havia pavimento, imagino que era por isso que nós sempre encontrávamos o caminho. A identidade de nossos pés com aquela poeira da estrada nos fazia donos da situação, não precisávamos de automóveis e até os evitávamos. Caso fosse necessário sair de Paraíso até Calhetas, pegávamos o caminho de Nazaré, aquelas horas tardias não nos assustavam. Mais uma vez íamos nós voando com os pés no chão e os círculos de fumaça no ar, queridos companheiros cigarros - amigos de nossa caminhada, junto com a nossa inseperável garrafa de vinho.

Ali nos sentíamos em paz, longe de um mundo com civilidade duvidável, garotos e garotas como nós simplesmente passávamos por sobre as pedras da beira mar, após descermos do monte que habita o farol, que para nós remetia a paisagem da capa do Led. Nos víamos tais quais aquelas crianças curtindo o momento e era inevitável cantar "And she's buying the starway to heaven".