Tragédia junina: a morte do Serginho(Lembranças do quintal da minha avó!)

Tragédia junina: O dia da morte do Serginho(Lembranças do quintal da minha avó!)

Ao buscar os causos e coisas que se passaram no riachão das lembranças de menino, não me lembro de outra não. Acho que foi a única morte acontecida em nosso tempo de criança. O fio que separa a vida da morte é ínfimo e todos nós, equilibramos perigosamente sobre ele, desde a derrocada do ventre da mãe da gente. Alguns ao desequilibrar-se até parece que vão cair, porém eles pendem prum lado, pendem pro outro e com muito custo, rezas, orações, Deus e a medicina, voltam novamente pra “riba” do fiozinho esticado da vida e da morte. Depois de tantos anos passados, fico cá comigo, pensando, pensando, pensando, as idéias dando voltas em minha cabeça sobre o ocorrido e afirmo: ele morreu de imprudências de menino. Alguns discordam e insistem na tese de homicídio doloso. Imprudência ou homicídio doloso, certo é que da vez que o fio dele arrebentou, poderia ter sido qualquer um de nós, ou eu, ou o Jair, ou o meu irmão Alvimar, ou o Mário do seu Francisco, insisto qualquer um de nós. Como todo menino corríamos todos, o risco, igualitariamente, de morrermos de imprudências de menino.

Porém, como ainda éramos crianças, não sabíamos que se podia morrer disso: de imprudências de menino. Por isso vez em sempre balançávamos, ainda que sem saber, no fiozinho esticado Mas foi ele o predestinado a ir-se embora deste mundo mais cedo. Um senãozinho de nada e ele estaria vivo talvez até hoje. Coisa de segundo, de milésimos de segundo e ele também, como os outros meninos de nossa época, teria crescido, casado, seria também pai de filhos, oxalá quem sabe, até avô, porque idade já temos pra tanto.

O cenário

Por conta das festas típicas, dedicadas aos santos São João, São Pedro e Santo Antônio, o mês de junho era aguardado ansiosamente pela criançada. Era o mês das quermesses na Paróquia. O salão ao lado da igreja ficava apinhado de gente. Era vendido pipoca, amendoim, balas, pasteizinhos. O leilão de frangos assados era disputado com muita alegria pela pessoas mais velhas. A dança de quadrilha ficava por conta do grupo de jovens da Igreja. E lã vinham todos eles vestidos de caipiras, os homens de chapéu de palha e camisa xadrez, bigode feito de carvão e calças remendadas; as mulheres de vestido de chita e dois lacinhos na cabeça dividia o alto da cabeça em lado esquerdo, lado direito. A gurizada de oito ou nove anos de idade se divertia estalando os “traks” pelo chão. O “trak” vinha acondicionado numa caixa parecida com a caixa de fósforos. O “track” era uma trouxinha pequenina de papel com um pouco de pólvora dentro. Parecia um minúsculo porrete. A alegria da criançada da minha idade era arremete-lo ao chão violentamente para explodir, causando o som que lhe dava nome: “traque”! O êxtase da ação, era jogá-lo proximamente aos pés de alguém que estava distraído e vê-lo se assustar com o barulho da explosão. O prazer advindo desta brincadeira só era suplantado pela emoção das bombas maiores que o track. Os garotos mais velhos que nós tinham autorização para compra-las e estourar. O nosso track perto de uma bombinha maior, era um tiro de espingarda perto de um tiro de canhão. Os garotos mais velhos ordenavam que as crianças mais novas saíssem de perto. Daí então, bomba na mão direita, caixa de fósforo na esquerda, depois então produziam o atrito entre a bomba e a caixa, o pavio se acendia. Aceso o pavio da bomba, era esta lançada pra longe e ficavamos aguardando o estouro. Era um “bum” de dar medo. Alguns, ao anteciparem o eminente estouro, tampavam os ouvidos. Algumas vezes, a bomba falhava. Ela não estourava. Os guris mais novos saiam em desabalada carreira, numa disputa para chegar primeiro ao artefato não explodido. A bomba que falhava era um prêmio ao mais esperto e mais rápido dos meninos. E o que fazíamos com uma bomba que não explodira? Ela era minuciosamente aberta. Tirávamos com cuidado o papel grosso que recobria a pólvora e a esparrávamos serpenteada pelo chão. Depois então acendíamos um fósforo e assistíamos extasiados a pólvora queimar, num rabisco faiscante de fogo na calçada.

Os personagens

Os coadjuvantes éramos eu, meu irmão Alvimar, o Jair, o Mário do Seu Francisco, o Carlinhos (irmão do Serginho).

Os atores principais foram o Véio Carrara, também conhecido como Paiá-paiá e o +Serginho.

A tragédia do Serginho (Imprudências de menino)

Era um dia desses de junho, de festa e de alegria. Como dito antes, era muito comum o uso de bombas e foguetes nessas datas. Os mais velhos podiam comprar bombas maiores. E muitos o faziam. O véio Carrara era um deles. A bem da verdade devo dizer que o Véio Carrara detestava que nós o chamássemos pela alcunha de “Paiá-paiá”. Quando era assim chamado, invariavelmente respondia: “__Sua mãe que sabe!” O Véio Carrara era um caquinho de gente, cabecinha branca, magrinho de dar dó, olhos fundos e andava escorado numa muleta. Com certeza ele já tinha pra mais de setenta anos. Invariavelmente ele se encontrava com um cigarro de palha na boca, advindo daí o apelido, de “Paiá-paiá, que diga-se de passagem, ele detestava. O Véio Carrara era um fã de bombas e foguetes. Para sua alegria e da criançada, sempre comprava dos maiores. Ele não se contentava em riscar a bomba e atirá-la ao longe. Suas bombas eram acendidas e sobre elas era colocado uma lata vazia qualquer. A bomba estourava e mandava a lata vazia lá no alto do céu. Era uma festa a parte para a gurizada.

Como as bombas que ele soltava eram grandes, todos nós queríamos chegar primeiramente áquela que não explodiu. Era sinal de que teríamos muita pólvora pra fazermos no chão nossos rabiscos faiscantes de fogo. Naquela fatídica noite, o Véio Carrara, como sempre riscou o fósforo e acendeu mais uma de suas bombas. Colocou sobre uma lata de tomate e se afastou para longe do perigo. Ficamos lá de longe, aguardando o estouro. Nossos olhos estavam tomados pela ansiedade em ver a latinha escafeder nos ares, nem respirávamos direito. O grupinho de garotos ficava amontoados e quase sempre um tocando o braço do outro, para sentir qualquer leve movimento que o outro fazia, buscando antecipar a corrida, caso a bomba não explodisse. Como sempre aguardamos, contando mentalmente, um segundo, dois segundos, três segundos, quatro segundos, cinco segundos, seis segundos. Entre o sexto e o sétimo segundo dava-se a partida para ver quem chegava na frente E foi justamente o que se sucedeu nesse dia. O Serginho partiu na frente de todos. Liderava a corrida em direção ao artefato que não explodiu em seis, sete segundos. Mal sabia ele que sob a lata, o pavio que fora aceso, perdera o ímpeto inicial, quase se apagara, atrasando o seu estouro. O fiozinho da nada que mantém a gente vivo ou nos carrega para o outro lado, estava ali pendendo prum lado e pro outro, no pavio da bomba que parecia quere acender e não acendia. Enquanto o Serginho corria em direção a bomba acreditando que ela tinha falhado, um restico de nada de faísca, reacendeu com força o pavio. Chegando a frente de todos, quando ele se abaixou para pegar a bomba, que ele pensara que falhara, ela subitamente explodiu. Vejam só os acasos da vida: se fosse uma lata de massa de tomate como a que temos hoje em dia, que não precisamos usar o abridor de latas para abrir sua tampa, ele ainda estaria vivo; mas não era! Era uma lata daquelas antigas, em que a mãe da gente usava o abridor de latas para ter a massa de tomate para colorir o macarrão. Quase sempre não abria-se com o cortador totalmente a tampa da lata de massa de tomate. Sempre era deixado uma partezinha sem mexer, para poder levantar a tampa que fora aberta na lata. O corte que o abridor fazia na lata de tomate era um corte serrilhado, cheio de dentes cortantes. Foi essa aba serrilhada que vitimou o Serginho. Ao explodir inesperadamente quando o Serginho se abaixava, a bomba lançou a lata de encontro ao abdômen do Serginho. A tampa serrilhada se encarregou de fazer o estrago. Como um desalmado assassino, ela rasgou sua barriga como se uma faca nas mãos de alguém querendo cometer uma vingança. Ele gritou e já caiu no solo segurando as vísceras assombrosamente expostas. Estacamos perplexos. Logo, logo outros adultos chegaram e ele foi levado, desmaiado, ás pressas para o hospital da cidade. Já não havia mais o que fazer.

Eta vida da gente! Fiozinho de nada! Tivesse ele contado até oito, esta tragédia não teria acontecido!