Meus Tempos de Prisão Domiciliar

As férias eram todas na casa da minha avó. Eu a chamava de "mutha", uma abreviação para "mother" do alemão "mãe" que era como minha mãe a chamava.

Como as férias eram sempre nas mesmas épocas do ano, várias vezes coincidiu que enquanto estava na casa da mutha eles chegavam.

Vinham em grupos de 15 a 40 pessoas, contando as crianças que eram muitas e de diferentes idades.

Quando chegavam iam direto para o canto das terras da mutha onde cresciam inúmeros e altíssimos pés de bambu. Lá montavam acampamento. Três ou quatro barracas de lona preta faziam de alojamento.

As mesmas eram armadas em forma de círculo ao redor de uma área vazia que limpavam bem e em cujo centro mantinham sempre acesa uma fogueira. A lenha para o fogo era feita de galhos secos e caídos ao chão que ajuntavam pela mata e potreiros.

Ficavam ali por muito tempo. Passavam o dia tecendo cestos com os bambus. Para se alimentar trocavam esses cestos por galinhas e mandioca com os colonos ao redor.

Mesmo assim, muitas vezes, ouvia o onkel (tio) reclamando que eles haviam, naturalmente, caçado uma ou duas galinhas do pátio da mutha e levado consigo. Também era natural que arrancassem alguns pés de mandioca e batata-doce nas terras da mutha e dos vizinhos.

As noites sempre eram de festas no acampamento. Ficávamos na varanda da casa da mutha, quietos e completamente no escuro, ouvindo a algazarra. Entoavam canções e conversavam muito entre si. Pena que não nos era possível entender uma palavra. A noite encerrava sempre na madrugada. Então nós também íamos para a cama.

De dia eu mal os via porque depois que eles se instalavam no bambuzal, a mutha e onkel me proibiam de sair de dentro de casa.

- Eles “pegam” meninas brancas e ruivas, eles diziam. Além de serem ladrões, preguiçosos e bêbados, acrescentavam. E eu, medrosa, os espiava, olhos grandes e assustados, por detrás da vidraça.

Só quando iam embora é que eu podia conhecer o local do acampamento.

Meu onkel os chamava de “bugres”.

Hoje, sei que a palavra "bugre" tem conotação pejorativa. Vem do Francês “bougre” e significa “herético”, ou seja, “não cristão”. Na Europa, os búlgaros eram assim denominados, e posteriormente, os indígenas do Brasil, que assim eram chamados para dizer que eram "selváticos", "pagãos", "incultos", "estrangeiros".

Os "bugres," como o onkel os chamava, que anualmente vinham para o bambuzal da minha mutha, eram índios da tribo kaigang.

Demorei muitos anos para desconstruir o que me foi tão profundamente incutido na cabeça sobre eles.

E hoje lamento tanto não ter tido a chance de me aproximar e conhecer sua cultura, seus modos de vida, sua língua. Quantas oportunidades me foram simplesmente negadas pelo medo incutido e porque acreditava no que diziam sobre eles.

Eram férias tristes aquelas. Eu, presa à casa da mutha, com inúmeras crianças soltando as tranças pelo mundo ao redor.

Eu nunca as via da minha janela, mas, podia ouvi-las em suas brincadeiras e cantorias.

Brincavam soltas pela mata, enquanto eu, por puro preconceito e medo, amargava prisão domiciliar...

Maria
Enviado por Maria em 23/08/2014
Reeditado em 24/08/2014
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