onde o mundo começa e onde termina ou onde a gente descobriu a tristeza

Sempre havia um sol a se por e a nascer, sempre havia flores nos finados e crianças brincando sobre os túmulos. Eram apenas pedras com fotos esmaecidas de fantasmas e o Cristo de bronze era preto e assustava a menina. E na casa de janelas enormes a noite entrava vinda de longe, daqueles morros que era onde o mundo parecia ir sem fim... Entrava nas histórias do avô e fazia caminhos pra dentro e de tanto andar em mingaus que não paravam de derramar da panelinha da criança que pedira alimento para a fada, ela se enlameava e ficava úmida , os pés sentindo a maciez de tanta fartura. Os dias vinham cedo quando ainda dormia e sempre quis ver o sol nascer e saber como era a hora em que escuridão ia virando luz e um dia já mocinha passou a acordar as cinco da manhã com seu belo despertador de caixa ... só que então o mundo que ia somente até a casa do terceiro vizinho e vinha com o alto falantes do cinema, já tinha se expandido e agora ela sabia que entrando no ônibus amarelo ia até uma cidade que tinha uma casa com dois leões de pedra guarnecendo o portão...

E depois o mundo foi crescendo e trouxe notícias de revolução e de soldados e de mortes... o mundo não parou mais de crescer... até que ela se cansou de tanto saber das lonjuras e de como as pessoas podem ser diferentes daquelas das historias do avô... ver crianças mortas enfileiradas como flores jogadas fora e muitas cidades em ruínas e o mundo agora vem em fotos sem fim, que a menina agora velha não quer mais ver, e então ela foge de si e entra pela porta lá no fundo da memória e procura uma boneca e o livro da sereia que dava aulas de canto... histórias de ursos e sereias nos pólos gelados...

Um dia com os primos, passeio no campo, risadas de adolescentes, água fria em caneca de alumínio em calorão de primavera, o rosto em brasa, as flores fazendo sentido e a bela blusa de listas azuis com laço.. e depois a noite com aquela rosa vermelha que a fez escrever um poema.

O trem apita longe, nos confins da infância e leva o homem morto cheio de sangue. Nunca vira um morto e nem assim em sangue vivo... Só voltou a ver um, já mocinha, quando o avô morreu e ela o viu pedindo ajuda.. e a avó sem dizer um ai.. a avó era silenciosa e doce e não gritou nem se lamentou... estranho lembrar de si mesma quando a sua vez chegou e também não chorou alto nem se lamentou... Mas a avó já perdera muito.. estremece a essa ideia ... não quer viver isso também... Quer apenas alguma vida sem atropelos , alguma alegria simples e crianças nascendo pra acreditar no futuro.. quer os laços apertados e nada sendo retirado...ilusão boba de gente velha... ainda assim, a menina velha sorri dos seus pecados e das suas ilusões... a enorme porta da infância sempre aguarda por ela... uma porta com relevos e um trinco gordo e a chave que é maior que sua mão...

A cadeira de balanço se move sozinha e a brisa pede que se feche a janela...ainda anoitece.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 17/09/2014
Reeditado em 17/09/2014
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