Xidó

Olha só a figura: Homem preto, bem preto mesmo, estatura mediana, gordinho, barriga bem avantajada e roliça, pernas finas, meio careca, dentuço, com um sorriso infantil maravilhoso, branco e espaçoso. Imagine essa figura impressionante caminhando no mato só de cueca, botas de couro cano baixo, meias negras puxadas até a canela. É assim que lembro dele caminhando nas intermináveis picadas mata à dentro.

Pessoa das mais benignas e bonachonas que conheci, o Xidó. Não lembro seu nome de batismo, pois nos trabalhos de campo todos tem apelido, alguns não gostam e dá até confusão, outros, caso do Xidó, vira identidade e seu nome verdadeiro fica perdido nos corações e mentes de seus familiares.

Conheci esse maravilhoso personagem nos trabalhos que fiz como geólogo no Rio Jatapú e em Rondônia nos anos de 1983 a 1990. Não me lembro de um momento sequer dele sério, demonstrando infelicidade ou insatisfação, vivia sempre sorrindo e caminhando lentamente para realizar seu trabalho. Era o motorista da lancha que levava a "piãozada" pro mato, para realizar serviços de sondagem e topografia, pois na Amazônia os rios são como ruas e os veículos de transporte são as lanchas, as canoas e os barcos.

Do nosso acampamento nas margens do Rio Jatapú na foz do Igarapé Arraia até a cidade de Urucará levávamos cerca de três horas de viagem em uma lancha pequena de alumínio, com um motor Yamaha de 25 HP. Eu normalmente cochilava, lia, olhava a belíssima paisagem e a fauna farta da região, pensava, ficava com dores nas costas, jogava água na cabeça, tirava e colocava o chapéu várias vezes e me impressionava com a impassividade do Xidó na popa da lancha segurando o leme. O barulho do motor se tornava ao longo do tempo uma canção de ninar, e o Xidó lá, firme, tranquilo, alerta, olhava-o vez por outra e ele sorria, sereno. Dava-me muita tranquilidade e segurança. Eu sabia que chegar ao nosso destino era apenas uma questão de tempo, pois tudo o mais estava resolvido pelo meu querido amigo e companheiro de labuta.

Sinto-me privilegiado de conviver com figuras e personagens como esta, o Xidó, amigão, protetor, parceiro incondicional. Quando chegávamos a Urucará, normalmente eu subia uma ribanceira e ia tomar as providências administrativas necessárias para manter a equipe de pesquisa no campo, fazia compras de rancho, deixava minhas coisas no hotelzinho do Beltrão, buscava o posto da telefônica, ligava para nossa sede em Manaus e dava notícias, enfim, cuidava da logística e das nossas necessidades técnicas. Nunca me preocupava com o que fazer da lancha, isso o Xidó dava um jeito e normalmente era melhor do que eu poderia fazer, puxava-a sozinho ribanceira acima, guardava no quintal do hotel e colocava um cadeado bem grosso pra não ficarmos a ver navios. Quando terminava de fazer as coisas, já à boca da noite, saíamos pra namorar, pra dançar, pra beber e outras coisas mais. Nunca vi o Xidó com namorada, mas ele se gabava que tinha uma lá pras bandas do campo de futebol, eu acreditava e dava todo o apoio, mas nunca vi a garota.

Perdi contato com ele em 1991 e nunca mais o vi. Sei, no entanto que ele lembra de mim com carinho, assim como eu, éramos amigos, dividimos muitas vezes nossas tristezas, dormimos inúmeras vezes à luz do luar por entre as folhas fartas dos arvoredos amazônicos, rimos de nós mesmos fazendo traquinagens nas cidades por onde passávamos, sentimos medo dos perigos que enfrentamos nos rios caudalosos da região, ouvimos juntos os barulhos inconfundíveis da floresta e nunca me esqueço do dia que ele ficou ao meu lado e me defendeu diante de toda a turma de trabalhadores que se amotinaram após uma dura e cansativa jornada de campo. Por isso finalizo minhas lembranças expressando minha gratidão e meu grande afeto pelo inesquecível Xidó.