"Ô gostosa!"

Era um desses carros utilitários que empresas prestadoras de serviços usam. Sabe, daqueles que vão com escadas presas ao teto e com dois sujeitos uniformizados no interior. Foi esse o tipo de carro que, em pleno centro de Curitiba, diminuiu a velocidade só para fazer graça (eufemismo generoso) com uma garota. Eu, que pela casualidade da agitação das calçadas parei ao lado dela, testemunhei de camarote.

O sujeito no banco de passageiros projetou a cabeça para fora da janela, armou aquele sorriso mal-criado (mais um eufemismo), deu duas batidas na lataria do carro, e mandou: "Ô gostosa!" E quando o carro dobrou a esquina o sujeito continuava lá, pendurado na janela, sorrisão faceiro no rosto, olhando para a garota e dando a entender que era tudo muito divertido.

Como homem já vi variações dessa cena acontecer tantas vezes que só posso imaginar quão comum deve ser esse tipo de vivência para as mulheres. E só posso imaginar, também, o porque de tão condenável hábito - hoje estou para eufemismos.

Na verdade, explicações não faltam, mas vamos ficar com três argumentos - ou melhor, uma piada, um absurdo, e um argumento propriamente dito.

1) "Os homens fazem isso porque estão tentando conseguir algum tipo de relacionamento com a mulher alvo de buzinadas e provocações". Bem, é um argumento pelo viés funcional, prático... e eis aí a piada. Ok. Vamos supor que alguém levantasse as estatísticas de quantas mulheres apreciam esse tipo de abordagem. E mais, vamos supor que as estatísticas mostrassem quantas mulheres, depois de um "ô gostosa!", sinalizam euforicamente para que o carro pare e então troquem telefone ou façam sabe-se lá o quê com os homens buzinadores. Não, isso não é comum, e é praticamente impossível. E além do mais, duvido sinceramente que o homem que buzina e provoca espere, verdadeiramente, que isso aconteça. Se acontecesse aposto que nem ele saberia como agir pois, como direi até o final do texto, a questão é outra.

2) "Esse tipo de coisa acontece por culpa das mulheres e seus corpos e suas roupas mostrando seus corpos". A visão absurda que é perigosamente um ponto de vista comum... A cultura da culpabilização da mulher pelos abusos masculinos ainda vigora com tanta força que faz necessário mencionar esse argumento. É como se o cara buzinasse ou provocasse porque, "com aqueles peitos, e com aquele decote', ela tá pedindo isso - e pior quando os homens acham que ela está pedindo ainda outras coisas mais que uma buzinada e provocação. Para além de toda a carga simbólica perversa embutida nessa ideia, fico apenas com o significado dela para os próprios homens: significa que nós somos animais, seres irracionais, que não controlamos nossos desejos, que temos uma vontade tão frágil que basta "aqueles peitos, e aquele decote", para que o controle escape de nós e passemos a bater na lataria do carro e a gritar coisas com conteúdo sexual. Sou homem e não sou assim. E sei que você, meu amigo, também não é assim. Então porque diabos deixar subentendido que somos assim?

3) "Os homens precisam provar que são homens, e provocar (publicamente) uma mulher é provar (publicamente) quão homem é". Esse argumento é argumento mesmo, por mais cômico que possa parecer. Estudos com outros povos e outras culturas (que usualmente recebem a alcunha de "primitivos") mostram como que a masculinidade é comumente um estágio a ser alcançado. E não é fácil alcançá-la. Noutros povos e noutras culturas, para um menino ser visto como homem é preciso ser provado, passar por testes, cruzar um rito de passagem. Cá entre nós, com prédios a perder de vista, cânceres por poluição, e internet na palma da mão, as coisas não são tão diferentes e ser homem ainda é algo a ser provado - o tempo todo, de vários modos.

Se assim não fosse, não existiria o complemento "de homem" para tantas coisas: roupa "de homem", voz "de homem", brincadeiras "de homem", jeito "de homem", corpo "de homem", atitude "de homem", etc. Se existe o "de homem" é porque existe a ameaça de não ser "de homem", e portanto é preciso obter sempre o "de homem". Assim, sem surpresas, temos cá entre nós nossas próprias provações, testes e ritos - que o diga a sempre presente cultura do levar um menino na "zona" para virar homem, ou o ir na "zona" com amigos ou parentes mais velhos e que é, afinal, um programa de homem.

O ponto é que ser homem e ter um patamar de masculinidade (a típica, a do macho, do homem com H maiúsculo), é, afinal, algo a ser mostrado e feito. Isto é, ser homem (ou um tipo de homem) é algo a ser praticado, escancarado, vivificado em cada pequeno ato e possivelmente pela vida toda. Uma memória infantil que tenho é de quando me diziam que homem só pode cruzar as pernas apoiando o tornozelo no joelho oposto, nunca as costas de um joelho sobre o outro, pois aí sim seria coisa de mulher...

É sempre um andar como homem, trabalhar como homem, pensar como homem... enfim, agir como homem.

E - pelos intrincados caminhos de nossa socialização masculina - buzinar, provocar, e gritar "o gostosa!" para uma mulher é uma das maneiras de se mostrar homem e alcançar uma certa masculinidade (que ainda se encontra em alta entre nós).

Tanto é que, geralmente, essas provocações dos homens são de homens em grupo - uma dupla já basta, como é o caso aqui narrado. E, mais geralmente ainda, feita a provocação, os homens buscam entre si um riso cúmplice, uma atitude camarada, como se tivessem feito algo muito divertido juntos; buscam, talvez, aquela validação coletiva, "sou homem, viu, viu?" Conseguir algo da garota é, talvez, o de menos.

Homens nesse tipo de situação dão continuidade à cultura de uma masculinidade que precisa ser provada (mesmo que às custas de algum tipo de violência contra as mulheres). É triste, e quase cômico, mas um dos modos de provar essa masculinidade é dando a entender (na frente de outros homens conhecidos e de quem mais estiver por perto) um interesse sexual por uma completa estranha vista na rua, entre buzinadas, urros, batidas na lataria, e o que mais a desrazoabilidade do momento permitir.

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Quando o carro virou a esquina e o sujeito finalmente voltou para dentro do carro, olhei para a garota ao meu lado. Compenetrada, quase distante, mexia no celular. E duas ideias me passaram pela cabeça, sem saber qual era a mais cruel: ou ela estava se esforçando para ignorar aquilo e uma simulação de indiferença silenciosa foi o recurso utilizado, ou ela simplesmente já estava acostumada com coisas assim.