Até os gatos sabem perdoar

Eu tenho um amigo que é como se fosse meu irmão, às vezes temos ideias gêmeas. Nos conhecemos a mais de um quarto de século, e durante um terço deste tempo, ao meu amigo acompanha um gato sem raça definida.

Ele é quase todo branco e tem a pelagem curta, exceto por um leve padrão tigrado no topo da cabeça, no rabo e nas extremidades das patas, bem suaves e quase imperceptíveis na tonalidade de um ruivo quase branco.

Seus olhos são azuis claros, como o céu do meio dia, mas seu olhar é tão profundo como um labirinto, o que lhe transfere um aspecto da sabedoria de quem soube viver nas sombras. Seus longos bigodes brancos se destacam na cabeça perfeitamente proporcional ao tamanho do corpo, mediano, mais pra grande que pra pequeno.

Seus movimentos são sempre elegantes, como os de todo felino, admiravelmente sutis, precisos, e geralmente silenciosos, quase não se percebe a sua rotina secreta pela casa, ele tem liberdade para sair e não é castrado, mas gosta mesmo de ficar em casa.

Agora que o leitor tem uma descrição fiel da fonte de inspiração desta crônica, passemos aos fatos, verídicos em cada linha. Sobre o amigo que sustenta este gato, confesso que já passamos anos distanciados, cada um do seu lado, por termos ambos pisado em calos, às vezes de propósito, somos homens, é inevitável.

Entretanto, se há um fator que se destaca na manutenção desta amizade de irmão, é a nossa capacidade de nos perdoarmos a cada mancada. Fica cada vez mais óbvio compreender , com a maturidade das décadas, que para ser próximo de alguém não se pode guardar rancor.

Num destes períodos distantes se passaram alguns anos, e eu confesso que julgava que o gato nem lembrava que eu existia. Um dia por acaso encontrei meu amigo e lhe dei uma carona para casa, quando ele abriu a porta o gato me olhou e chorava alto, doído, um miado abafado contínuo, soluçando, muito triste, que ele fazia toda vez que me via, na época eu ainda não entendia. Precisou passarem meses desde que eu voltei a frequentar a casa do meu amigo, até que um dia em que o gato chorava aquele berreiro esganiçado eu tentei captar a sua mensagem. Senti o peso do desprezo com o qual eu tratei o gato do meu amigo, olhei bem nos seus olhos e pensei comigo mesmo, que o gato me perdoasse pelo meu egocentrismo, por eu não ter percebido por que ele fazia aquilo.

Depois deste dia, passei a cumprimentá-lo com frequência, e ele raramente chora na minha presença, quando eu visito meu amigo, ele mia de alegria, meu amigo acha engraçado o gato gostar tanto de uma visita, e eu percebi que o gato mudou muito comigo, ficou muito mais tranquilo. Acredito que ele de alguma forma me disse como se sentia.

Agora, quando eu visito meu amigo o gato está sempre na porta quando a gente chega, ele mia de alegria, nunca um gato me seguiu tanto, ele passou a ronronar direto, e fica feliz em me ver, posso entender que ele soube me perdoar.

Tem gente que não acredita no afeto dos animais, mas eu aprendi com este gato que isto é inegável, que eles também pensam e sentem. Meu maior bem são os amigos, mas nem todos são humanos.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 14/11/2014
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