A Imaginação Perfeita

A Imaginação Perfeita



Imagine que você gosta de refletir fazendo uso da palavra escrita. Lembre-se do tempo em que milhares de pessoas guardavam seus rabiscos no fundo da gaveta, com receio de mostrá-los a outrem. Imagine que você leu o texto de um cronista no jornal, e aquilo mexeu tanto com suas idéias, que você chegou ao ponto de mandar uma carta para o autor. Imagine que ele lhe responda. Mas não com um “muito obrigado pela atenção”. Com algo mais. Imagine que a partir daí vocês iniciam uma troca de pensamentos.

Imagine que foi possível, graças a um emaranhado de intenções, a realização de um local onde a sua carta, para o determinado autor, ficaria exposta, e que milagrosamente você perdeu o receio de expor as suas idéias – emocionais, mentais, eruditas, ingênuas, etc., e passou por sua vez a redigir, talvez não com o mesmo acuro do cronista. Talvez até melhor, mas, independente da qualidade, outras pessoas, que também tinham seus rabiscos escondidos na gaveta, passaram a ler os seus e uma troca de correspondência foi efetuada.

Imagine que a noção do pacto civilizatório e do bom senso tomassem conta, quase que por inteiro, desse intercâmbio, e o conteúdo dessa correspondência estaria amparado na camaradagem e no surgimento de uma espécie de amizade. Pode-se supor uma espécie de amizade pois não preponderam os aspectos mesquinhos da inimizade. Assim, imagine que inexistam comentários do gênero: “puxa, que porcaria isso que você escreveu”. Ou, “vai te danar, minha coruja zarolha e débil mental faria melhor”. Nada disso.

Imagine que mesmo a despeito de uma ou outra fria cordialidade, o fator dominante se encontra mesmo no ambiente da admiração, da surpresa e do afeto. Tudo isso por causa dos seus rabiscos, que traduzem as idéias que você mesmo tenta traduzir para você, as vezes com significativa relevância, as vezes um tanto desajeitado. Ocorre que o seu raciocínio articulado ajuda a esclarecer alguma coisa no cerne de quem está do outro lado da leitura.

Imagine que essa espécie de amizade não lhe trouxe infortúnio algum, e se por ventura tenha acarretado em algum, é irrisório face ao contentamento amealhado. Algo que você não explica, pois não existe lucro tangível de espécie alguma nessa troca de correspondência sobre rabiscos.

Imagine que essas pessoas, que lêem o seu íntimo, acabam se tornando curiosamente próximas de você, mesmo que nunca as tenha a visto e considerando seriamente a hipótese de que nunca irá vê-las. Entretanto, essas pessoas existem. Todas tem uma assinatura de personalidade ao se comunicarem com você.

No decorrer de algum período, surge outra espécie de situação: familiaridade. Imagine então que já exista uma comunicação própria na troca de correspondência sobre rabiscos. Você não consegue explicar como, mas você conhece aquela pessoa, que você nunca viu. Conhece infinitamente melhor do que o seu vizinho, que lhe dá bom dia todo dia, que depois se tranca em casa, ou sai de casa, de noite os cachorros dele latem, ele grita com a esposa, os filhos choram e noutras noites permanecem em silencio ou comemorando bodas. Todos os dia de manhã você o vê abrindo a porta da garagem. Nalgum meandro da sua percepção você vai identificar esse vizinho apenas como uma miragem. Indescritivelmente diverso das pessoas que rabiscam e comentam seus rabiscos.

Imagine que você leu em algum lugar que “criações coletivas são o fruto de uma relação baseada na sabedoria e na abertura em aceitar e incluir todos que entram em nossas vidas”.

Imagine que numa manhã chuvosa você se encanta com a idéia de fazer parte de uma criação coletiva. E que não sentirá o menor receio de confidenciar a alguém de confiança que, mesmo sem ganhar um tostão por essa estranha inclusão, mais estranha ainda é a satisfação de fazer parte disso. E que num voraz ataque de franqueza você admite ter se sentido muito bem, (aliás até muito melhor do que a saudação matinal com o vizinho), em parabenizar o aniversário de nascimento de uma pessoa distante de você como a Áustria dista de Portugal. Isso não importa. Ambos integram aquilo que decerto pode ser encarado como uma criação coletiva. Isso importa.

Imagine que isso se repita num crescendo, como a soma dos dias.

Você e seus pares necessariamente não compartilham dos mesmos pontos de vista, tem histórias de vida muito diferentes, não moram sequer no mesmo bairro. Todavia, esses fatores, ou mesmo itens como faixa etária, cor da pele, crença religiosa ou filiação partidária não impedem que você se permita sentir uma sensação próxima da alegria ao tomar contato com o rabisco de outrem, absorver na sua medida o que lhe foi possível e expressar também a medida da sua identificação.

Imagine que tal situação está além da sua imaginação anterior, que se há uma década atrás uma cartomante lhe contasse a respeito você gargalharia na cara dela, no entanto hoje, avento supor, você não gostaria de imaginar a sua vida sem isso.


(Reedição)



(Imagem: Artista Holandês Anônimo, 1660, óleo sobre tela)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 19/11/2014
Reeditado em 16/09/2020
Código do texto: T5041636
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