FIEL CAPATAZ

Das muitas histórias que meu pai me contou, esta vale a pena ser registrada.

Lagoa das Almas, nas cercanias da Lapa, era uma localidade hostil, macabra, e de enormes desavenças entre fazendeiros. Resolvia-se tudo na ponta da faca ou no aperto do gatilho.

Naquela época os fazendeiros usavam um cinturão em couro para segurar as calças, assim como também para dar guarida a sua algibeira com seus réis, bainha com seu punhal e o coldre com seu trinta e oito. Era normal esta ostentação em público. Este aparato denotava fortaleza, segurança, e respeito.

Os réis, dinheiro da época, eram guardados em casa, e a grande parte protegidos e ostentados nas algibeiras. Quando havia um assassinato de gente fina, abastada, os aproveitadores e saqueadores caiam feito urubus famintos em cima do morto para depená-lo do punhal, revolver e os réis da algibeira. Por esta razão, os fazendeiros procuravam selecionar bem seus capatazes para garantia de sua vida e do patrimônio. Estes guarda-costas acompanhavam seus patrões aonde eles iam, defendendo-os ou tentando fazer isso. Nas contendas, os capatazes, de cada lado da rinha, se respeitavam, e por isso nenhuma ponta de punhal ou chumbo feriam suas peles, apenas a de seus patrões.

Seu Libório, nome fictício aqui, fazendeiro de malquerença na região, vivia trocando farpas com outros fazendeiros. Tocaias com desperdício de chumbo eram comuns. A cada instante muitos viventes se tornavam defuntos. Nos velórios, entre uma oração e outra, um mar de lágrimas, desespero, e a promessa de vingança, entre mil rancores, acontecia ali mesmo, babando por cima do cadáver.

Deus por certo não tomava conhecimento disso.

E as terras da Lagoa das Almas iam aos poucos se tornando férteis com o adubo de seus defuntos.

Um dia seu Libório, corpulento, em seu alazão, acompanhado de seu fiel capataz, foi tocaiado e entre milhares de balas e reluzir de punhais caiu fulminado estrondando seu esqueleto no chão poeirento.

O capataz do seu Libório tentou de todas as formas defende-lo, mas foi inútil. Ali a seus pés o seu patrão estendido, ensanguentado, não respirava mais.

E os vingadores, ao ver o Libório fulminado, gritaram em festa.

- Matamos o filho de uma puta! Estamos vingados! E saíram cavalgando deixando uma nuvem espeça de poeira na estrada.

Da mesma forma que os assassinos se fizeram em debandada, os saqueadores chegaram.

Alguns tiros para o alto, e os gritos austeros do capataz foram o suficiente para colocar em desembalada correria aqueles urubus malditos.

Não demorou muito, e a polícia chegou para conferir o ocorrido, mas foi veemente barrada pelo capataz que disse:

- Só deixarei o meu sinhô quando a patroa chegar! Ninguém vai tocar nele não!

Foram várias as tentativas de a polícia chegar ao cadáver; Lá estava o fiel capataz, de joelhos e de armas em punho, protegendo o corpo estatelado do seu patrão.

O sol a pino esquentava o tempo e apodrecia o corpo. Alguns urubus, famintos, ansiosos pela carne farta, animados se empoleiravam mais adiante numa árvore.

A esposa chegou desesperada, escabelada, e em prantos tantos se jogou por cima de seu inerte esposo. O capataz pacientemente, de joelho ainda, ao lado do corpo esperou o banho de lágrimas da esposa derramado no defunto; Esqueceu seu jeito bruto, e com cuidado e esmero retirou do corpo morto o punhal, o revolver e da algibeira deis mil contos de réis entregando para a lamuriosa esposa. Levantou-se, ajeitou sua rústica roupa, colocou seu roto chapéu, conferiu seu amolambado cinturão, apalpou sua algibeira, montou lépido seu pangaré, e sem dar a menor atenção aos homens da lei, afastou-se vagarosamente enxugando com o dorso da mão, disfarçadamente, algumas lágrimas que teimavam em banhar sua espessa e desalinhada barba.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 21/11/2014
Código do texto: T5044073
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