A INFÂNCIA

A INFÂNCIA

A infância é um pé pequeno calçado num sapato grande. Pra mim, nada pode representá-la com tanta fidelidade. Pé pequeno para andar em falso sempre no limite e sapato grande para mostrar o tamanho da liberdade. A infância é liberdade. Quem dera o mundo com a liberdade da infância. Disse o poeta: "Eu daria tudo que houvesse para voltar os tempos de criança - Não sei pra que é que a gente cresce se fica tudo na lembrança..."

Uma lembrança boa: às cinco e meia da manhã, banho no riacho. Numa poça mais funda longe do bebedouro do gado. Nu corpo inteiro mostrando os possuídos para a natureza. Tudo era tão natural. Banho de mergulho, nu corpo inteiro, uma emoção indescritível. Não havia malícia. A água, calma, fria quase gelada, na poça formava uma névoa sob a sua superfície pelo orvalho da manhã como proteção contra nossas travessuras. As roupas tiradas às pressas e deixadas no primeiro galho de jurema. O mergulho logo desfazia a calma, e na superfície agora aparecia nossas bundinhas redondas, entre um mergulho e outro imitando golfinhos. Bricavámos de esconde esconde debaixo d’água. Quem tinha mais fôlego era o vencedor.

Às seis e meia, copo na mão com ou sem açúcar, ansiosos da xiringa quente do leite do peito da vaca. Da fonte ao consumo, puro, espumado, alvinho. Expectativa de quem seria o primeiro. O Mudo, tirador de leite das vacas, logo pegava os copos e os enchia, com certeza para atender nossa pressa. Diminuia nossa expectativa e aumentava o dia de brincadeira que estava só começando. Montavámos nossos cavalos de pau e saíamos em perseguição as ovelhas, acompanhados de Sultão que nos guardava, com seu latido, dos animais selvagens. Ele nos aguardava, era sua responsabilidade. Subiámos e desciámos campinas, açuando o catarro do nariz, misturado ao suor, no próprio rosto, entre gripes e resfriados provocados pelo sol forte daquela região, e ele ali conosco, incansável Sultão.

Cavalos cançados, já à tardinha, novo banho pra refrescar e cama. O dia passava depressa. Competiámos com as galinhas o dormir e o acordar. O galo Geremias, o do pescoçó pelado, com seu cantar despertador, ganhava todas para nós e para o jumento Chá preto.

Não havia televisão. Não ouviámos falar de drogas, mortes, assaltos, violências. No rádio o herói do Sertão: Jerônimo. Na tv e no rádio de hoje, temos café da manhã, almoço, jantar e na hora de dormir o falar de tudo quanto não presta. Propagam as coisas ruím. Noticiar é o pretexto. Eles esquecem de mostrar o lado bom das coisas: a satisfação pelo trabalho com o menor aprendendo. Chance única de absover a prática e perpetuar o fazer profissional. Da fonte ao consumo como o copo de leite da minha infância. Não se mostra a natureza, o cantar dos pássaros e o bom das pessoas, hino daqueles nossos dias. No nosso dicionário não haviam as palavras, estresse, medo, desconfiança, pressa exceto a de viver, desrespeito, insegurança. Talvez existissem, mas longe de nossos olhos. Nos preservavam.

O mundo mudou rápido e tecnologicamente. Nós ainda não estamos preparados para o essas mudanças. As crianças de hoje dormem tarde e acordam tarde. Perdem as melhores horas do dia. Vivem estressadas. Se entopem de informações necessárias para torná-los adultos precóces. Em frente as telas esquecem o pião, a bola de gude, o ferro de cravar, o caminhão de carga, a peia quente, a academia, o papagaio, o jogo de futebol. Consumem produtos acabados que esterelizam a emoção do momento da criação.. Longe dos peitos da vaca, nem sabem a fonte, quase sempre.

É urgente retomar a infância. Vivênciar a infância. Termos crianças novamente. Nós podemos e devemos fazer isso por nossos filhos. Como a de Sultão é nossa responsabilidade sua guarda. Preservá-los e proporcinar uma infância, não como a nossa pois essa já passou, e só nos resta a saudade e a lembrança, mas com os pés pequenos calçados em sapatos grandes, sem os nós dos cadaços, deste final e começo de milêmio.

Manuel Oliveira

Manuel Oliveira
Enviado por Manuel Oliveira em 28/05/2007
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