A ENXADA

A E N X A D A

Nasci em uma fábrica, em São Paulo. Logo após o meu nascimento, fui colocada em uma caixa com mais doze irmãs, todas deitadas confortavelmente. Ansiosas, aguardávamos o nosso destino. Para qual parte do Brasil seríamos destinadas?

Chegou o dia da partida. Fomos colocadas em um caminhão e, pelo que ouvimos, iríamos para Minas Gerais.

Minhas irmãs e eu tínhamos o mesmo nome: Tarza. Chegando a Minas, fomos morar em um uma linda Casa de Ferragens, denominada “Campo Alegre”, na cidade de Calambau . Fomos tiradas da caixa e penduradas em um arame, bem à vista de nossos pretendentes.

A primeira a sair foi uma de minhas irmãs. O comprador chegou e, após examiná-la, levantou-a e, com o dedo em uma de suas pontas, deu-lhe um beliscão. A minha irmã sentindo um pouco de dor, deu um sonoro tinido. O comprador alegrou-se e disse:- Esta é das boas, tem um aço muito bom...

As outras, em dias alternados, foram também saindo e nos deixando muitas saudades.

Acabou chegando o meu dia. Fui escolhida da mesma forma que as outras, com beliscão e tudo... Fui levada, pendurada em um arreio, para um Sítio muito bonito.

Na manhã seguinte, o meu novo dono disse que iria arranjar um bonito “cabo” para mim. E arranjou um cabo de “pau mulato” que era muito resistente.

Fui morar em um quartinho que o pessoal chamava de “ quarto de ferramentas”. Lá fiquei conhecendo vários parentes: o enxadão, o machado, a cavadeira, a foice, o ancinho e muitos outros. Tínhamos uma convivência tranquila. Quando um saía para trabalhar, todos ficavam aguardando a sua volta, na expectativa de ficarem sabendo as novidades do sítio.

O meu primeiro trabalho foi participar da capina de um milharal. Nós éramos umas quinze, nas mãos de nossos donos. Modéstia à parte, eu era a mais bonita e a mais nova da turma. No fim do dia, o meu dono me lavou, tirando toda a terra que ainda estava agarrada em mim. Como era comum, relatei para os companheiros tudo o que ouvi dos homens que trabalhavam conosco. Fiquei sabendo os nomes de seus familiares; do que eles pensavam em fazer no final de semana e, também, de uma festa programada para o final da próxima capina, festa que eles chamavam de “bandeira de roça”.

E, assim, fui levando a minha vida em diversos trabalhos: capinando milho, cana, feijão, amendoim, mandioca e outros variados serviços.

De vez em quando, o meu dono trocava a minha cunha, que é um pedaço de pau que me prendia ao cabo. Nesse dia eu sofria muito, pois na batida da cunha com um machado, algumas vezes, o meu dono errava o alvo e me acertava provocando uma grande dor.

O tempo foi passando e eu diminuindo de tamanho. Certo dia, ouvi o meu dono dizer que iria comprar outra enxada, pois eu já estava muito pequena e seria transformada em um “cacumbu". Procurei saber o significado daquele nome e fiquei sabendo que era “ferramenta velha”. Qual seria o meu destino? fiquei preocupada. No início, fui morar em uma horta onde trabalhei por muito tempo. Lá eu ficava em um canto, debaixo de uma árvore, longe de meus companheiros. Além de capinar, eu, também, servia para arrancar minhocas para a pescaria de meu dono. Fui diminuindo de tamanho, até que um dia o meu cabo quebrou e fui jogada junto a outros “ferros velhos”, aguardando a passagem de um caminhão que nos levaria para uma fundição. Lá seríamos derretidos e, de nossos restos, os homens fabricariam outras ferramentas.

Até chegar a minha morte, vou sentir muitas saudades do local onde vivi e muito trabalhei para o meu dono.

Assim como os humanos dizem que, depois de mortos, terão uma nova vida, eu, também, terei uma nova vida no "corpo” de uma nova ferramenta.

Assim espero...

**************

Texto inspirado em um programa da Rádio Nacional do Rio, na década de 50. Tal programa era chamado “Alma das Coisas”.

"Tarza” era o nome de uma marca de enxada muito conhecida na região.

Murilo Vidigal Carneiro

Calambau /novembro/2014

murilo de calambau
Enviado por murilo de calambau em 08/12/2014
Código do texto: T5062821
Classificação de conteúdo: seguro