DECANTAÇÃO

Nos chamados dias úteis, desmembrados em cadastros, graus, cerimoniais e extratos, utilizamos rótulos harmonizados com o relógio. Ao se encerrar a semana é que enveredamos no terreno da pacholice, quando a desordem e a proliferação das ideias restam justificadas. Durante o merecido descanso, até a luz e a sombra têm uma importância estética que é encoberta pelo cismar das aspirações rotineiras.

O descanso semanal, em tributo ao "boom" mercadológico, cada vez mais se encurta e sofre ameaça de extinção. Além do surto mercantilista, a determinante é o medo da insubordinação e das ideias revolucionárias que nascem espontâneas e perigosas na introspecção. É também o receio de que as pessoas enxerguem as coisas como de fato são, o que por certo acarreta dano irreversível à tirania das regras e ao círculo vicioso de um domínio que é preestabelecido e inquestionável.

Todavia, enquanto houver o sábado e o domingo para descanso, não há como refrear a liberdade. O expediente fica encarcerado as nossas costas e torna-se difícil conter os planos "subversivos".

Duvidar das imposições, dos projetos, das leis e das teses é um privilégio filosófico sem cotação no mercado. As ideias ao bel-prazer e a conspiração pacífica são renascimentos insubstituíveis.

Rever a pressa do tempo imóvel na lembrança, questionar ordens recebidas e a validade das regras, entender o verdadeiro apreço e a fiel companhia, tudo isso são gêneros de primeiríssima necessidade.

Na verdade, ser autêntico não é tarefa fácil para os dias úteis, onde prevalece a dissimulada trama dos "eus", os falsetes da civilidade, o conflito e a mecânica defensiva. A sobrevivência é tecida por enganos, é feita de pecados, apologias formais e refalsadas. Já aos sábados e domingos, enquanto industriamos os artefatos responsáveis por um domínio da própria consciência, não há como refrear a autenticidade.

Revolucionários da história, sem encobrir os reflexos da alma, começam por olhar fundo nos objetos da realidade. Segundo biógrafos famosos, alguns param no mofo e no bolor das estantes, ou nos cárceres da segurança pública. A maioria, digo eu, sem o devido registro, comportadamente, recria as segundas-feiras.