EXTRAVIO

Após fazer a barba, demorou-se no banho. Quando asseado e enxuto, jogou fora o sabonete, a toalha, o creme e o barbeador. Vestiu-se com esmero. A seguir, recolheu ligeiras memórias pelas dependências vazias da casa que o abrigou por várias décadas.

O faqueiro, a louça, os eletrodomésticos e a mobília foram negociados no comércio de antiguidades. Outros pertences como livros, roupas, sapatos, toalhas, lençóis, celular e laptop foram doados ou dispensados na lixeira.

Depois de abandonar o emprego e o tratamento médico, resignou-se. Cerrou janelas e portas da antiga morada e ganhou a amplidão da rua.

Vestido com um terno elegante, único que lhe sobrara, misturou-se ao vaivém da multidão. Nada acusava seu extravio.

Ao meio-dia, serviu-se regiamente no buffet. No pospasto, abusou dos sorvetes. Ninguém seria capaz de escrutinar seu destino. Gastronomicamente satisfeito, percorreu a cidade, atentando para lugares que normalmente eram encobertos pela rotina.

No meio da tarde, refugiou-se no cinema para rever “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman. Ao final da película, mentalmente, em contra-ataque às jogadas do destino, ensaiou movimentar algumas peças no mosaico xadrez. Mas logo abandonou o duelo extremo.

Com os olhos da despedida, incursionou pelo shopping. Examinou joias, provou chocolates, avaliou perfumes. Em frente às vitrines, observou a imobilizada felicidade dos manequins que trajavam as melhores grifes mundiais.

As modelos, esculpidas em fibra, com a textura da pele humana, lábios rubros, olhos e rostos expressivos, expunham sua incansável beleza a uma corte arrebatada e sonhadora.

Enfim, desvinculado das ilusões, buscou o ar puro das ruas.

Por ocasião do entardecer, ao tocarem os sinos da Matriz, quando percorria o Parque Renascença, optou pelo ingresso definitivo em uma enorme tela que se deixava trabalhar pela viscosidade do outono. À frente dos seus passos, entre o clamor sinuoso das árvores desnudas, abriu-se um caminho infinito e atemporal. Uma nuvem sombreada e distante intrometia-se no crepúsculo amarelado. Pelos contornos da realidade, animavam-se folhas secas, algumas imitando asas, outras a volutear pelo chão, levadas pelo impressionismo do vento...