Cartas Rasgadas

Menino franzino, mal nutrido, pés descalços

Tinha nove ou dez anos de idade,talvez onze

Tempos difíceis aqueles da década de 1960

Seu pai se reunia com alguns conhecidos

Duas ou mais noites por semana em uma casa

Onde eles jogavam cartas até de madrugada

Ali se apostava de tudo, desde dinheiro

Até relógios, anéis, bicicletas, sanfonas etc.

Cada um tinha seu próprio baralho

E num acordo mútuo revezavam o mesmo

Todos tinham direito a uma rodada

Na qual poderia utilizar suas próprias cartas

O menino se sentia honrado por seu pai

Que o levava de companhia para estas noites

Por vezes o menino cochilava numa cadeira

Tremia de frio nas noites de inverno

No retorno a pé para sua casa

O menino percebia um certo desconforto

E agitação de seu pai com olhares furtivos

Parecia uma dor desconcertante

Em decorrência de levar o pequeno filho

Por um caminho no qual ele mesmo

Já não queria mais andar, nem passar

Não há exatidão de quantas noites foram

Mas numa delas o pai do menino

Quebrou o silêncio enquanto caminhava

E na volta pra casa expôs ao filho

O quanto era prejudicial aquele hábito

Desculpou-se com o menino

Reconhecendo que estava errado

Pois jamais poderia levar um filho

A prática e lugares tão impróprios

Com resignação rasgou as cartas

E o seu baralho pessoal jogou

Pela última vez, mas aos pedaços pela rua

Ao menino, pareceu ver o pai rasgando

Não somente cartas de um baralho

Mas o próprio coração enquanto dizia

Ao filho o quanto era maléfico aquilo

Que por várias noites fizera envolvendo o menino

E que o menino jamais fizesse o mesmo

O menino cresceu e obedeceu ao pai

Jamais apostou em jogos de cartas

Mas acabou apostando em vidas

Apostou na vida de pessoas, não contra elas

Mas a favor, de conhecidos, familiares

Amigos, desconhecidos e até de inimigos

E mesmo quando ganhava suas apostas

Não era para si mesmo que ganhava

Via a felicidade das vitórias alcançadas

E as vidas nas quais ele apostava

Saiam jubilosas, enquanto ele mesmo

Seguia seu caminho, e de mãos vazias

O menino que cresceu fisicamente

Mas que por dentro permaneceu menino

Seguia apostando em mais e mais vidas

Até que um dia já cansado de suas apostas

Percebeu ter perdido todas as apostas

Que fizera em si mesmo pelo caminho

Então num momento de reflexão

Lembra de seu pai naquela última jogatina

E descobre que a única diferença entre eles

São aquelas cartas rasgadas no meio da noite

A Carlos Borges
Enviado por A Carlos Borges em 17/12/2014
Reeditado em 03/10/2015
Código do texto: T5072656
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