HOMEM INOXIDÁVEL

Desenhos científicos revelam o esforço para a recriação humana. Mapeamentos genéticos contribuirão para subjugar patogenias, vírus e bactérias. Em estágio mais adiantado, chips implantados no cérebro serão transferidos para um corpo biônico.

Como se pode intuir, o ser humano prepara-se para desfrutar da imortalidade.

Em futuro próximo, gerações que não forem premiadas cientificamente, estarão a interagir com um espécime resistente e fantástico.

Indaga-se acerca das emoções que acompanharão o novo homem. Supõe-se da sua versátil idoneidade em um reinado de fórmulas matemáticas e condutores magnéticos. Conjetura-se que o novo homem viajará na trilha infinita dos números, subjugará o decesso, a matéria, o espaço e o tempo.

Ninguém duvida que o ser indestrutível, ao navegar próximo da velocidade da luz, munido da frieza e obstinação, ousará em direção aos segundos iniciais do universo.

A extraordinária criatura se comunicará através gráficos e sinais indubitados. O manifesto artístico, responsável por captar as minúcias do espírito, poderá ser definitivamente esquecido.

Esse mega ensaio que projetará a íris, o tamanho do pé, os clones e as navegações a portentos anos-luz, certamente descuidará do convívio em meio a evolução dos seus controles. Suspeita-se que o novo ser, na rota infinita da solidão, não estará capacitado para entender a brevidade inextinguível de uma momentânea, mas agradável convivência.

O que toca o espírito, mesmo de forma breve, é mais intenso e durável do que a eterna e monótona eternidade. Essa lição, todavia, estará relegada ao esquecimento.

O ente ideológico, a estética, a utopia e o clamor íntimo da justiça também estarão gravemente ameaçados.

A nova espécie, fruto de uma rigorosa escolha, dispensará as exigências da alma. Nascido sob os rigores do aço e da cibernética, o novo ser terá a capacidade de se autorregenerar indefinidamente. Nem a fome ou o mercado de capitais afligirá seus inoxidáveis comandos.

Esse “imortalóide” subestimará inúmeros capítulos das histórias pessoais, que foram escritas com emoção e intensidade. A ele bastará o vácuo profundo e silencioso do cosmos.

Os mais otimistas, mesmo que a possibilidade seja escassa, acham que algum resquício do criador contribuirá para amansar os metais. Essa redenção poderá estar num surpreendente descuido. Quem sabe a criatura, entre o esplendor das galáxias, ao manejar por descuido algum programa arquivado na espaçonave, se deixe tocar por um sutil atrevimento?

O adágio da Sonata ao Luar de Beethoven, como distração momentânea, talvez venha povoar sua curiosidade. A intromissão musical, ao desalinhar sentenças eletromagnéticas, poderá subverter o sistema e "humanizar" o novo ser. É possível ainda, que o trecho musical contribua para apontar um sentido ao que, embora passageiro, seja bem vivido.