Crônicas urbanas

Crônicas urbanas - Nome de anjo

Ele me surgiu assim,meio de repente,como convém a uma boa-nova.Atravessou a rua num galope e se aproximou de mim e de uma garota no ponto de ônibus.Chegou falante,com um sorriso na cara que parecia ser o seu cartão de visitas.Puxou conversa com a gente com tal facilidade que nos fez esquecer da demora do ônibus.Ora se dirigia a mim,ora à garota. Conversa vai,conversa vem,o tempo passou e o nosso ônibus chegou.

Entramos.Ao passar pela roleta,procurei um assento onde batia pouco sol.E,num minuto,lá estava ele sentado à minha frente.Ele não se sentou ao meu lado cujo lugar estava vago.Mas postou-se à minha frente,com o rosto voltado para mim, de uma forma tão natural e delicada,que era impossível não entender que ele havia me escolhido como um interlocutora.

O garoto passou a falar de si mesmo.Paulista de nascimento,19 anos (parecia bem menos), trabalhava como caixa no Minas Shopping aqui em BH e adorava o trabalho dele.Estranhei toda aquela espontaneidade,o jeito leve,a alegria tão natural e o fato de ter me "escolhido" como ouvinte.Mas de pronto me interessei pelo seu relato.Acho que atraio pessoas com uma boa historia para contar.Creio que já vem estampado na minha cara o meu gosto em ouvir as pessoas.

E o garoto passou a falar de sua vida.De repente me vi interrompendo sua narrativa,tal a riqueza dos detalhes e o que o rapaz passou a despertar em mim.Ele estava na cidade há alguns meses.Perguntei sobre a sua família,sobre a sua vida e....fui surpreendida por um dos relatos mais emocionantes que ouvi até hoje.

Rafael,esse é o nome dele,saiu do interior de São Paulo sozinho.Se eu achava que entendia alguma coisa de sozinhez,mudei de opinião enquanto ouvia a sua história.

Ele deixou sua cidade em busca de uma vida um pouco mais tranquila em BH.Não tinha família.Perdera os pais e os irmãos mais novos,num latrocínio ocorrido em sua cidade.Os seus pais,juntamente com os irmãos,estavam indo visitá-lo no hospital.Rafael estava internado por causa de uma pneumonia,na capital paulista.No meio da estrada,três bandidos armados pararam a Kombi que levava sua família e mais duas pessoas e mataram todos,inclusive o motorista.

Nessa parte da narrativa eu o interpelei.Como assim?!Não acreditei no que ouvi.Era como se, de repente,Rafael passasse a me contar um filme de terror.Mas,com a sua carinha de menino ,sem alterações na fisionomia, confirmou a verdade dos fatos.E ele ficara só no mundo.Os avós maternos e paternos não chegara a conhecer.Os poucos tios que tinha também já havia morrido.Era um sobrevivente!

Depois que saiu do hospital,de ter ficado numa instituição para menores em São Paulo até completar 18 anos,resolveu vir pra Minas.Perguntei a ele por que Minas.Respondeu que foi por simpatia e por ter ouvido falar que aqui tinha menos violência e as pessoas eram mais tranquilas.Não quis dizer a ele que,infelizmente, Minas já não é bem assim,mas não dava para "judiar" mais dele.Perguntei apenas como estava se virando por aqui,o que fazia atualmente além de trabalhar,onde morava.E Rafael me surpreendeu com o seu otimismo.

Com apenas dezenove anos,terminara o ensino médio,já tinha um curso técnico de gerenciamento de empresas no currículo e,só não fez o ENEM desse ano porque a sua recente chegada em BH,a busca pelo primeiro emprego e a necessidade de encontrar um lugar para morar ocuparam todo o seu tempo.Mas não lhe faltava determinação para prosseguir os estudos.Queria fazer faculdade na área gerencial e já sonhava com uma promoção no trabalho.Contava com boas amizades no serviço e o carinho e proteção de sua supervisora que,inclusive,já quase o "adotara",convidando-o para morar num barracão de sua família.

A nossa viagem já estava chegando ao fim e eu não pude deixar de perguntar ao meu jovem interlocutor sobre o seu maior projeto de vida. Com um sorriso no lábios e um brilho nos olhos me respondeu prontamente:

_Quero encontrar uma garota legal e dar prosseguimento à família Correia!

A minha vontade? Dar um abraço forte no Rafael e desejar-lhe muita sorte.Não o fiz assim desse jeito,pois ele desceu um ponto antes ,depois que dei a ele as informações para chegar ao local que pretendia.Mas sei que se sentiu acarinhado por mim durante todo o nosso trajeto e a nossa longa conversa.

E o seu nome é Rafael,que significa "curado por Deus" ( em hebraico).Dois dias antes do natal,recebi a sua história, que me veio de forma inesperada,no meio de uma tarde encalorada , como um precioso presente.E não tenho dúvida que ele está predestinado a muitas coisas boas na vida.

Que assim seja!