CUMULUS!

Quando viajamos tiramos proveito daquilo que nos dá prazer, o que nem sempre é o prazer de todos. Quando um cego passeia, ele não pode curtir cenas, paisagens ou imagens registradas em fotografia ou filmes. Ele usufrui dos outros sentidos do corpo, tal como o olfato, o tato, a audição e da relação humana ou do ambiente que se faz – portanto, do intelecto.

Um viajante, realmente, fica impulsionado a fotografar qualquer coisa que vê, geralmente documentando sua presença em algum lugar; até tirando auto-retratos, que hoje se chama “self”... Ele não curte o momento em si, mas é tal a fissura em mostrar para o mundo seus feitos, que deixa de observar e sentir maravilhas do que passa à sua volta - que não vão ser documentadas jamais; que podiam ter ficado em sua memória emocional.

Sei disto tudo, apesar de eu entender que cada ser humano tem seu tempo. Cada viagem tem seu valor, seja ele qual for, com que intenção for. Passeios, no cérebro de um ser humano, têm diferentes valores ao longo da vida. Por isto muitas vezes voltamos a lugares que antes visitamos, mas com a cabeça voltada para novas descobertas. Ninguém é dono da verdade, da mesma forma que ninguém pode sentir a vida pelo outro e compreender as razões do outro. Assim sendo, num grupo misto de turistas encontraremos eventualmente ovelhas negras, assim como alguém quis mostrar que eu era...

Não posso dizer quem foi, pois eu não podia retirar meu olho da máquina fotográfica, tentando “guardar” aquele céu pra mim, enquanto eu ouvi um diálogo que propositalmente foi direcionado à minha atitude.

Ao fim de uma tarde estávamos descansando numa piscina, pegando sol nas pelancas, mas eu me interessei por nuvens em forma de cumulus ninbus, uma massa branca contrastando com um céu azul de brigadeiro. Foi quando em alto e bom som, alguém fez este comentário:

”Não consigo entender como é que uma pessoa não admira a natureza e se integra a ela, mas sai correndo pra fotografar qualquer coisa! As pessoas não relaxam nunca!”.

Tirar retrato é válido. Devemos sempre tirar retratos, mas fotografar é coisa para poucas pessoas. Um fotógrafo não precisa necessariamente de uma boa câmera, mas de gosto pela arte. A arte de fotografar é admirar uma cena e tentar transformá-la em imagem para sempre, representando sua interpretação da beleza, fazendo com que os “olhos” de uma máquina alcancem a dimensão intelectual de quem a usa.

Naquela hora ninguém conseguia ver, a olho nu, os raios de sol refletidos no céu, mas eu vi através da minha Sonyzinha. Estava na hora de o sol se apagar, mas ele insistia em ficar, assim como uma criança que luta pra não dormir. Foi isto que eu senti na hora.

Como um cego, que recorre aos seus tantos sentidos, tão aprimorados por contingências de sobrevivência, sobrevivo sobrepondo uma lente entre mim e a natureza. E por isto dedico ao meu algoz desconhecido aquilo que jamais se abrirá pra si enquanto não fechar a boca.

Leila Marinho Lage]
Visconde de Mauá (RJ/MG), janeiro de 2015
http://www.clubedadonameno.com
Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 17/01/2015
Reeditado em 11/09/2016
Código do texto: T5105089
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