Uma crônica, um ônibus e 0,20 centavos.

Recepcionista. Poeta. Garçom. Não. Na verdade, não é assim que as coisas funcionam dentro dos ônibus. Pessoa. Pessoa. E, olha que legal o cabelo daquela pessoa. Sim. No ônibus somos todos pessoas. Apenas isso. Deixamos nossas profissões, status e problemas com a família, do lado de fora. Assim que passamos a roleta nos tornamos apenas mais um, no amontoado de gente que segue na mesmo direção. Quer que eu segure sua bolsa? Ah! obrigado, meu filho. Que calor. Nem me fale, estou quase passando mal. Quer sentar? Não se preocupe, desço na próxima. É no ônibus que descobrimos quem realmente somos. Nossa essência como ser humano. Perfeitos na arte da generosidade. Vai me levar? Desculpe-me. Então sai da frente, porra. As ruas que passam, de nada importam. As pessoas que estão em pé, de nada importam. Só queremos chegar em casa e pronto. As regras lá de fora, de nada valem dentro do ônibus. Aqui existem leis singulares. Na base do olho por olho e dente por dente. Uma espécie de tensão que se instala no momento em que você sobe. Uma guerra fria. Louca para eclodir. E que as vezes até explode nos momentos mais inoportunos. Ôh, motorista, você acha que tá conduzindo um caminhão de bois? Não dá para andar de ônibus se você não for esperto. Calculista. Contorcionista. Tem que ficar de olho em quem vai descer nos próximos pontos e se situar nas proximidades. Tem que marcar território. Com as mãos. Com a bolsa. Deixo para vocês o Salmo 23. Eles sempre deixam esse Salmo. Deve ser o mais fácil de decorar. Engraçado que no ônibus, as leis da física nunca se aplicam. Dois corpos sempre ocupam o mesmo lugar no espaço. Boa noite, pessoal, desculpe interromper a viagem dos senhores. Eu nunca ouço o resto. Sempre boto o fone e finjo que estou dormindo. Os ônibus deveriam ser tratados com mais respeito. Afinal, são de grande importância para nossas vidas. Uma espécie de segunda casa. Um Exú. Que está sempre indo em frente e abrindo os caminhos do nosso dia a dia. Dormimos. Lemos. Vemos televisão. Paraí, motorista, que eu vou descer. Entramos na internet. Paqueramos. Fazemos de tudo, um pouco. Quem nunca andou de ônibus tá perdendo. É um espetáculo de humanidade, conforto e bem-estar. 2,60? Mas ontem mesmo era 2,35.

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 28/01/2015
Código do texto: T5117176
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