Bala Perdida

– Com licença, com licença! Também quero ver, dá licença! Quem é ele?

– Sei não... Sei não...

– Será que é conhecido?

– Sei não... Sei não.... Parece que nem é daqui.

– Caraaamba!? Mais um esticado na rua que nem cachorro.

Foi ai que, em meio ao empurra-empurra, alguém comentou:

– Ou não era boa-pinta, ou foi bala perdida. Não empurra.

– Nem fale em bala perdida, os hospitais estão lotados.

– É, parece epidemia. Como morre gente!

– Quando é que isso vai parar? Será que nunca vai ter fim? – disse uma mulher entrando na roda, assustada, com um pano cobrindo o cabelo e mão tampando a boca.

– Parece! – alguém respondeu.

– Do jeito que a coisa vai, qualquer dia desses “eles” farão autópsia e simplesmente darão por causa mortis, “bala perdida”.

– Só faltava isso, né? “Bala Perdida”, o nome da mais nova praga.

– A gente não vê mais outra notícia, só bala perdida.

– Pois é! Antigamente se morria de doença comum: gripe, catapora, sarampo e uma pá de outras doenças, principalmente diarréia. Como morria gente com caganeira! Agora!? Agora só se morre de bala perdida. Com licença – comentou um gordinho de voz fina e alta, enquanto saía da roda; com guarda-chuva n`ua mão e uma sacola na outra e, todo mundo rindo de suas graças.

– É...Também acho – concordou um mulatinho, se acocorando.

– Dá medo sair de casa. Onde já se viu? A bala perdida mata qualquer um, pode ser rico ou pobre.

A roda de curiosos já era grande. E alguns apenas riam das falas engraçadas.

– A culpa é do governo – desabafou um português com um refinado sotaque e, silabando lentamente as palavras, condenou: só-do-governo. Onde já se viu, pois? Que país é este, raios! Também, quem mandou vocês votarem contra o desarmamento? Agora, taí: vocês que agüentem. Nunca mais vai morrer gente com caganeira. Daqui pra frente, é só de bala perdida. – a risada foi uníssona.

O mulato, acocorado, e de olhos fixos no defunto, acrescentou:

– O culpado, também, é o presidente. O quê é que ele faz? Faz nada!

– Não! Não é só do presidente – rebateu o português –, o povo não disse não? Eu mesmo votei no não. E você? Como você votou? Vai ver que nem se lembra. Foi no sim ou no não? Lembra?

– É... Também votei no não. Acho que sou culpado.

– Quem mandou ninguém saber votar? – condenou a mulher de pano no cabelo, dando uma bronca geral – Aqui é lugar de discurso? Parem de falar estas besteiras e respeitem o morto. Vão procurar o quê fazer. Arranjem um meio de acabar com isso, seus vagabundos. Onde já se viu?

– Deixa esta maluca ir embora – disse o português pigarreando; limpando a voz.

– Será que nunca vão arranjar um remédio para acabar com essa maldita praga? Deste jeito não vai sobrar um favelado vivo – comentou o mulato, se descocorando.

– Remédio? Como dar remédio pra bala perdida? Eu sei que existe remédio pra curar gripe, sarampo, catapora e mais uma pá de doenças, principalmente caganeira – rebateu novamente o português, bem sorridente.

– E como é que eles vão fazer para acabar com isso?

– Só se inventarem um remédio e colocarem no cano do três oitão.

– É... Também acho. Ih! Até que enfim. Lá vem os ôme. – disse o mulato, apontando uma viatura de polícia e, saindo sorrateiro, acrescentou: tô fora, meu. Sabe, vou dar o fora daqui antes que comecem a indagar tudo.Tchau.

– Tchau.

– Tchau.

– Tchau.

Viatura parou.

Polícia desceu. Descobriu a cara do morto. Olhou, olhou e disse: caaaramba! Virou-se para os curiosos e indagou:

– Você o conhece?

– Não.

– E você?

– Não.

– Você, ai, conhece?

– Não.

– E você?

– Não.

– Alguém o conhece?

– Nããão!

Polícia anotou na prancheta, falando em voz alta:

– Bala perdida

Oito horas depois:

Cadáver no chão..

Poucos curiosos.

Indiferenças.

Luvas no chão.

Chão sangrento

Um rabecão.

Dispersão.

Por último, uma criança olhava desolada para as marcas do giz no asfalto, enquanto amargos pensamentos vagavam em sua mente, e, assustada e cautelosa, com o que mais uma vez acabara de ver, vagarosamente disse:

– Quem-será-o-próximo? Eu?

O rabecão deslizou vagaroso no asfalto e sumiu na esquina zunindo sua sirene.

Rua vazia.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 03/06/2007
Reeditado em 03/06/2007
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