A Fêmea no Divã (EC)

Era segunda-feira, dia normalíssimo para a maior parte dos ocupados, i.e, gente que trabalha, estuda, cuida da casa e da própria roupa. Mas, para Ana Clara as segundas eram especiais, diferentes, esperadas com ansiedade e certo frenesi. Se Ana Clara tinha algum motivo que justificasse tudo isso? Claro, era o dia do encontro, não era um encontro furtivo, feito às apalpadelas, não, aquele encontro era formal, agendado, todos na família sabiam o destino de Ana Clara, ou melhor, sabiam o endereço postal, porque o destino ninguém sabe.

Pela manhã, cedo, Aninha, como era chamada pelo marido, tomava banho, e que banho, usava esfoliante, sais, depois hidratante, tinha o creme para os pés, creme para as mãos; passava para a fase da maquiagem, base para o rosto, blush, pó facial, corretivo labial, corretivo da área dos olhos, batom hidratante, gloss, lápis para sobrancelha, delineador dos olhos e, terceira fase, hora do banho de colônia, tinha preferência por fragrâncias florais, não muito adocicadas, não suportava chamar a atenção, era uma mulher reservadíssima. Por último, escolhia uma roupa discreta, qualquer vestidinho acompanhado de uma rasteirinha lhe caía bem. E partia para o seu destino.

Porque não gostava de dirigir, pegava uma condução, tinha sempre à mão um livro ou revista, não suportava conversas corriqueiras sobre o tempo, enfermidades, casamentos desfeitos, nada; noventa minutos depois batia à porta de n.1573, Travessa X. Uma senhora de olhos pequenos, não muito simpática, sempre dizia a mesma coisa, nenhum bom dia, apenas “Entre, o Dr. Flávio Gikovate está a sua espera”.

- Bom dia, Ana Clara. Como vai? Sem que ela tivesse tempo de responder, o Dr. Gikovate, sem pausas, disse-lhe.

- Muito bem, mocinha. Sua terapia completa hoje dois anos, fiz uma análise breve, quero que você me ouça, sem interrupções, por favor. Nesses dois últimos anos, você tem sido uma paciente um tanto leviana, apesar de não faltar a uma única sessão, ainda não fala de forma aberta, sempre reporta ao seu subconsciente como se ele fosse o responsável por suas atitudes de rejeição e ausência da família. Você reclama de seu marido todas as semanas, são sempre as mesmas razões: ele é muito amoroso, dedicado, ciumento, cuidadoso – com você, a casa, os filhos, os cães, enfim, um homem romântico, apaixonado e que quer salvar o próprio casamento e você o que faz, foge do pobre coitado, se esconde através das suas obrigações domésticas e mente, é sempre uma dor de cabeça aqui, um torcicolo ali, enfim, não houve processo algum nessa terapia. Precisamos que o seu marido participe com você a partir de agora....

- Mas, Dr.....

- Ana Clara, é hora de substituir o seu ideal romântico do amor, amar significa crescer junto, de que valeria a você um amor cafajeste, um homem mais ousado, um Don Juan ou um Christian Grey?

- Mas, Dr...

- Mulher, todos os dias ouço a dezenas de mulheres queixando-se por não terem um parceiro apaixonado e cuidadoso e você, a contrario sensu, despreza este homem! Por que Ana Clara, por quê? Chego a pensar que a culpa de toda essa problemática é toda da Simone de Beauvoir, essa mulher revolucionou a cabeça das mulheres e hoje, pobres coitadas, essas fêmeas estão cada vez mais infelizes e sozinhas.....blá blá blá.

- Mas, Dr Gikovate, eu nem sei quem é Simone de Beauvoir, tampouco ouvi falar em Chistian Grey. O meu problema é..., não sei como falar. Como pode o Sr. não ter percebido todo esse tempo?

- Mulher, fala de uma vez!

- O meu problema está bem à minha frente. Como pode um renomado médico psiquiatra, psicoterapeuta, escritor, conhecedor das dores da alma, não perceber quando uma paciente está apaixonada por ele? E agora, o que faremos?

O Dr. Gikovate respondeu meio ressabiado, num tom descortês e rude.

- Aqui está a prescrição. Não se preocupe, três meses é o tempo necessário. Por favor, senhora, a sessão está encerrada, tenho outro paciente à espera. Passar bem.

Ana Clara deixou o consultório magoada. Abriu o papel que estava à sua mão. Nele, um endereço e uma indicação: internação compulsória.

Este texto faz parte do Exercício Criativo. Para ler outros textos basta clicar no link: http://encantodasletras.50webs.com/afemeanodiva.htm

RosalvaMaria
Enviado por RosalvaMaria em 02/02/2015
Reeditado em 02/02/2015
Código do texto: T5123196
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