AO LONGE UMA VOZ CHORA NA NOITE

Ao longe chora uma voz na noite. E nossos corações estão cansados. Doloridos. Nossas vidas são tão sofridas. Nossos olhos já estão rasos.

Ao longe uma voz chora na noite. E nós é quem pedimos socorro. Estamos presos. Pedimos controle. Da nossa liberdade.

Estamos presos. De mãos atadas. Perante um mundo. Que nos devora. Sem piedade. Sem amor. Arrasta-nos para esquinas feias. Mal sondadas. Arrasta-nos para sonhos que quebram. Para a falta de afeto. Para empregos que nos desperdiçam. Para sermos obcecados com os padrões do mundo. A riqueza. O poder. O corpo perfeito. A moda. A política. O pecado. Os roubos. Os vícios.

Ao longe chora uma voz na noite. E nós não ouvimos. Perdidos na vida. Leva-nos numa torrente de esgoto. Para o fundo do poço. Para as latrinas mais sujas.

Nossas famílias tornam-se cada vez menores em nossas enormes casas. Não mais conversamos. Não mais temos tempo. Não mais temos hora. Para nada. Corremos para cima e para baixo. O tempo todo.

Ao longe chora uma voz na noite. Mas os sons da madrugada não nos deixam ouvir. A música alta. As festas. As noitadas. Álcool e drogas agora são anestésicos. Uma noite fugaz com um total desconhecido. Uma total estranha. E amanhã reinarão as olheiras. As maquiagens borradas. O mau hálito. A dor de cabeça.

Ao longe chora uma voz na noite. E estamos tão ocupados... Sempre buscando informação. O tempo todo atrás de um novo sonho. Que logo se torna pesadelo. A nossa saúde é gasta. E nossas economias se vão na doença.

Ao longe chora uma voz na noite. Mas os lugares no mundo já estão colocados! Temos de ser perfeitos em tudo. Temos de dar conta de todas as coisas. Tudo vale a pena. Podemos ser chatos. Autoritários. Podemos descontar a mágoa e a frustração nas pessoas. Porque sempre estamos mais certos que os outros. Sempre o outro precisa me ouvir. Entender-me. E eu só preciso me libertar. Posso acelerar no farol vermelho. Passar por cima de quem estiver na frente. Posso humilhar meus servos como escravos. Aquela alma gêmea que mora conosco já não é mais ninguém. A não ser para fazer o trabalho sujo de casa.

Ao longe chora uma voz na noite... E qual é essa voz? De quem é esse murmúrio? Quando começou esse lamento? De repente todos param e olham. De repente as chuvas caem sobre nós. E vemos que somos todos iguais. De repente um momento de trégua... Um breve momento perante uma eternidade imutável. De repente surge um sorriso nos nossos lábios. Será que lembramos que somos irmãos? Será que lembramos que não somos perfeitos? Será que podemos olhar para o lado e nos reconhecer?

Uma voz que de fato chora. Uma voz que deseja mudança. Uma voz que se cansou de ser o que os outros querem. Uma voz que quer apenas ser livre. Quer ser feliz. Quer ser poderosa. Quer deixar a escuridão.

Uma voz que não mais suporta ser sufocada. Uma fala mansa que canta tolas canções de amor. Uma pedra que rola de uma montanha para destruir nossos muros. Nossos impérios. Nossas mentiras. Um clamor que pede para que não o abandonemos. Que pede: Seja feliz! Seja como você é! Corra atrás de seus sonhos! Arrisque! Abandone o passado.

Basta que lembremos que a voz chora na noite. E que esta pode ser a nossa própria voz. E por que, pergunto, não a ouvimos?