NEVOEIROS

O esboço sombrio da arquitetura inferia uma gigantesca nau sem tripulantes. A cidade afundava na espessa névoa.

Como ruínas de uma civilização, tudo sobejava descolorido e preguicento, velado pelas fibras cinzentas do amanhecer.

Através dessa moldura, difícil pressentir o comportamento no âmbito doméstico, intuir a conversa dos casais sobre o vestuário adequado para enfrentar o dia, ou imaginar o monólogo da solidão. Não menos improvável, idealizar o arranjo do café e do jornal na mesa da cozinha. Mais custoso ainda, desvendar a alma suburbana, presumir o beijo do operário em sua mulher antes de incursionar na faina habitual.

Ausente a realidade, sobrava a destreza de um cinzel invisível a esculpir, entre o céu e o rio, os traços fugidios da urbe.

No entanto, ao ingressar no nevoeiro e transpor as ruas descoloridas, era possível distinguir o pulso da existência. A animação cênica das almas era nitidamente percebida em um estouro de vozes e ruídos. Via-se os achaques do transporte coletivo, a procissão operária, os infantes na trilha da escola. Por lá e cá, testemunhava-se a pressa sem freios, a corrida diária pelo ideal nem sempre conhecido.

Aos poucos, na companhia de passos largos ou de viaturas frenéticas, a crônica descortinava os dramas da realidade. Era possível testemunhar os sinais das guerras urbanas cujos projéteis, repetidas vezes, tomavam rumos difusos, vitimando inocentes.

Nos caminhos despontavam instituições financeiras, gigantescos painéis publicitários, hospitais, escolas, quartéis e prisões. Surgiam agências que controlavam servos e reverenciavam senhorios. Pelas vitrines sociais, gigantescos logotipos conviviam com o racionamento do pão e a distribuição da miséria.

Apesar do embaciamento, percebia-se o sacrifício das multidões e a unção dos eleitos; distinguia-se a substância das células políticas.

Através de uma perspectiva afastada, quando a crônica se despedia da urbe, via-se o nevoeiro ser engolido pelo despertar de numerosos tiranossauros de concreto. Ouro dadivoso e persistente, afastando o véu cinzento da manhã, vibrava sobre o dorso gigantesco dos “lagartos”. Na alternância dos semáforos, nos sinais e códigos particulares que dirigiam consciências, desenhava-se a história e a esperança das pessoas. Na transparência do dia, o intangível sentido da vida.