O helicóptero que caiu no meu quintal.

O helicóptero cortava o silêncio do vale no contrário da correnteza do rio. Seguia rumo à cidade. Fazia noite alta, beirava a data nova no calendário. Incomum em tardias horas helicóptero cruzar o céu da cidade. Mesmo em horas claras, se passa um já dizem: é o governador. Mas na última hora do domingo não haveria demanda de governança para tirá-lo de Vitória. Mais provável seria um E.T. da Constelação do "Canis Major" pousar aqui do que Hartung voar nessas horas . Talvez fosse resgate. Algum ricaço desafortunado de saúde seria levado à capital na propulsão daquelas céleres hélices.

Pousou no estádio. Que importava? Só debrucei na janela e em pensamentos para que chegasse sono, não aeronave.

Sono que ignora a jornada da segunda. Meu irmão falou de chover à noite. Chuva espanta insônia. Previsão fajuta. O prazer de ver chuva molhar anuvia-lhe a razão, assim qualquer nuvenzinha cinzenta, que ele vê perdida no firmamento, pressagia: "Hoje, nem que de noite, vem toró".

Privado de sono, de chuva, precisava privar de mim mesmo. No vazio de gente, busco nos sons que se propagam longínquos, uma música para existir de saudades, existir de amores, que me faça dormir e sonhar com tudo isso.

Dorme a cidade. Toda gente dorme. Dorme o mundo. O exílio da vigília não me afoga em oceano povoado de solidão. Na companhia da calada da noite me transformo naquele que tanto admiro e tanto gostaria de ser: Livre em mim mesmo. Não o bicho do mato que se zanga a perguntas cujas respostas estão à cara. Não o moço covarde ante a possibilidade de um diálogo autêntico, transparente, verdadeiro, de confiança, ao largo do distanciamento que encurta o caminho da solidariedade. O cara que sou de dia sabe que tantos esperam ou gostariam isso dele, mas é abatido por achar que vai dar a cara no muro. Pois em meio à clara insônia da noite, a vida substitui-se, dorme o sujeito egoísta da escuridão do dia, o que se atola no apelo do comércio e cujo profundo intento é resplandecer descolado num índigo Zoomp na festa de sábado e esconder as persistentes olheiras em óculos de sol Clairmont.

Àquele que tanto admiro e gostaria de ser, no menor vestígio sonoro da noite fria: o remoto trem de ferro em itinerário melódico Vale do Rio Doce abaixo, apetece ser o maquinista a passar pontes, túneis, lugarejos a lançar o olhar não para o umbigo, mas para onde possa ter o desejo de bons sonhos a toda gente que dorme e não o faz sentir solitário.

Assim, o moço súdito da humanidade e rei em si mesmo sem se importar com isso, aplacado pelo sono que viceja, boceja, esmorece, esmaece e quando quase desfalece, um barulho adia o sono. Um ronco de motor em agonia assoladora, vem de três ou quatro quilômetros. Na madorna - não se sabe qual dos dois - quase certo que o tolo que se esconde de horizontes, diz: "quero mais é dormir, se for avião que caia longe do meu telhado e se puder, longe do meu quintal".

Manhã, despertar em sacrifícios, café sem açúcar, Clairmont na cara, ao quintal pegar o carro, vejo o Juninho da Sara. Esforço-me para cumprimentá-lo. Ele que é vizinho, companheiro de malhação - sempre festeiro - antes de falar olha-se no reflexo do vidro do carro, ajeita o penteado e me pergunta informando: "Você soube que caiu um helicóptero nessa madrugada, ali em Barbados"? Falei pra ele "Você está de brincadeira, Calango Turbinado"! Pois caiu sim! E seis morreram. Veio buscar órgãos para transplantes - completou ele.

Tomei-me de constrangimento. Vontade de chorar, precisava prender o choro. O Juninho ali, colocava-me em ambiente nada privado. Às vezes tenho quase uma certeza a respeito do destino: ele é sempre um algoz que 'mais cedo ou menos cedo' nos detonará em tristeza. Sem controle algum, a gente vive como um barco à deriva, ao "Deus dará". Inevitavelmente naufragaremos na desgraça.

Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver. A buscar a vida. Foi assim que os seis do helicóptero que caiu tão próximo da minha casa - sete quilômetros - morreram.

Mesmo quando quase todos dormiam seus sonos, eles trabalhavam em prol da vida. Isso tudo me faz querer mais ainda ser igual àquele que admiro tanto.

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Joel Rogerio
Enviado por Joel Rogerio em 05/06/2007
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