Os anos passaram (Rio de Janeiro)
 
                                              "Continuamente gozamos aqui as delícias
                                                    de contemplar a natureza formosa. Esta cidade
                                                    é sempre encantadora, quanto mais tempo      a
                                                    conhecemos, tanto mais gostamos dela.    Mas,
 
                                       quanto mais tempo a conhecemos, tanto
                                       menos podemos descrevê-la." STEFAN ZWEIG 
                                              (sobre o Rio de Janeiro). 


 
              Parece que vou escrever novamente sobre o Rio de Janeiro.  
              Afinal, a cidade faz no dia primeiro de março 450 anos. Já escrevi sobre ela uma dúzia de vezes, aqui mesmo no Recanto. E não quero me repetir. Estou me sentindo como aquele divertido personagem do Grande Otelo na escolinha do Prof. Raymundo. Ao ser sabatinado pelo professor, a colega do seu lado  soprava a resposta certa, mas pedia: “mas fala diferente”. Então, vamos lá. Vou dizer diferente...
              Os dias passam céleres. É com espanto que vejo a cidade do Rio de Janeiro de hoje, cidade onde vivi por toda a minha vida, lá se foram 50 anos. Uma existência. E passei por tudo: de grandes sustos aos pequenos êxtases.  E logo me tornei carioca, quando aqui cheguei, criança ainda, em 1944, julho de 44 para ser mais exato. Não vivo mais no Rio e penso que não conseguiria mais morar na mais bela cidade do mundo. O Rio de hoje não é nem a sombra do  Rio da minha  infância, da adolescência, da mocidade. Essencialmente, era uma cidade alegre, a sua maior virtude. Talvez choque meus leitores ao dizer, claramente, que na década de 40, a cidade era bem suja, faltava água e faltava luz. No entanto, o nascido na cidade, bem como o que vivia no Rio, que se acariocava,  imediatamente, não se perturbavam com essa observação, pelo  contrário, as mazelas da cidade eram motivo de brincadeiras, e as marchinhas e as piadas diárias surgiam aos borbotões. Não era irresponsabilidade das pessoas, não! É sinal de maturidade reconhecer as próprias mazelas.  Ao lado das brincadeiras, das interpretações benévolas diante da realidade feia, nos botecos, nos bares à beira-mar, nos armazéns dos portugueses, nas casas de quibes dos turcos, também se discutia como melhorar a cidade. Acho que acontecia com a gente, nós cariocas, era essa interpretação amena, tolerante, sempre a favor desse Rio Moleque, lúdico por natureza. Aliás, o filósofo Bachelard dizia isso, com palavras sábias, a respeito dos conceitos que fazemos. Dizia ele: “ Os conceitos importantes não saíram da observação, mas sim do cérebro humano para contradizer a observação”.  O clima era esse: vascaíno abraçado com flamenguista; português rindo das piadas dos cariocas sobre os patrícios; turcos eram  sócios dos judeus. Essa era, sim, a cidade maravilhosa, onde não havia violência, nem drogas.  E como explicar esse fenômeno contraditório?  E aí vem a minha interpretação, muito pessoal. Acredito que a beleza fulminante da cidade acabava por nos embriagar de tal modo que não tínhamos  outro jeito senão amá-la até as  suas últimas consequências. Ninguém escapa a essa beleza irresistível.  Beleza é algo que todos procuramos. E quando nos apaixonamos, a formalidade vai pro brejo. É por isso que o carioca é irreverente, informal, pois ele está de bem com a sua amada, a cidade maravilhosa. No Rio, jamais nasceria o “politicamente correto”.  Como bem lembrado por uma carioca, você  perderia tempo e não seria atendido num bar, caso se dirigisse ao empregado do café desta maneira: - “Senhor, por favor, sirva-me um café”.  Você tem que entrar no bar e ir direto ao ponto: “ um café, meu chapa”. Vai ser atendido na hora.
              E foi nesse Rio romântico e livre que surgiu a crônica, inventada pelo escritor  carioca  Machado de Assis. Não existe peça literária mais liberta, mais carioca que a crônica. É essa conversa boa, gostosa, onde se discute de tudo, onde se reforma tudo e, ao final, fica tudo como era antes.
              Alguém mais puritano poderá criticar este estado de espírito alegre, sempre alegre, da cidade. Essa era a alma da cidade, na época de ouro dos anos 50. No entanto, apontaria para esse puritano a situação em que vivem hoje os cariocas, perdidos num formigueiro humano, sem a mobilidade e a liberdade de outrora. É apenas mais uma mega metrópole, que vai se tornando fria e insensível, como todas as outras grandes e violentas  cidades que existem  por este mundo afora.
              Mesmo assim, minha pulsão, que chega a ser voluptuosa, para não dizer sensual mesmo, como nos velhos tempos, é para comemorar o aniversário da cidade,  do jeito que comemorei o Rio quando completou 400 anos.
              Bibi Ferreira, carioca, como foi também Chiquinha Gonzaga, esteve outro dia na televisão. E perguntaram para ela porque não aderia à política. Sem ser alienada, mas muito inteligente, enxergando longe, com a inconfundível carioquice, respondeu: - “ Meu amigo, conheço bem o ser humano e o brasileiro (deveria estar pensando no carioca) e sei que não temos temperamento para  simpatizar com ideologias radicais, que não levaram a nada em parte alguma do mundo. Quando meu marido se reunia com seus amigos para falar dessas ideologias, saía de casa, dizendo que iria para a aula de flauta. Na verdade, ia para casa de uma amiga jogar pocker.”
             
              O Rio de Janeiro quatrocentão não precisava de discutir bobagens, já era humano naturalmente.
 
 
            Como é bom lembrar-me daquele Rio delicioso, do Corcovado, do Pão de Açucar, das Praias.
          Como é bonito tocar flauta. Como é bom viver!
              
Gdantas
Enviado por Gdantas em 28/02/2015
Reeditado em 02/03/2015
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