Troca de e-mails com o Escrivão de Órfãos

Troca de e-mails com o Escrivão de Órfãos.





(Para facilitar ao leitor a compreensão desta correspondência, fica estabelecido que o algarismo 1 identifica o remetente e ou emissor original dos e-mais com suas queixas, indagações e reflexões e o algarismo 2 com as respostas lacônicas do Escrivão).



1. Prezado senhor Escrivão de Órfãos, boa noite, venho por meio desta relatar pavorosa situação que ocorre agora no cenário político do nosso país. A população pranteia, externando ser muito difícil fazer pecúlio nessa situação, sobretudo quando tem de assistir à passagem de outros numerosos concidadãos, que se esgueiram com suas famílias e agregados, carregando em alforjes ocultos ouro e riquezas. Litígios foram inevitáveis e ficou acordado que a
quantidade de impostos devidos à União torna necessária a criação de novos impostos. Que fazer?

2. Isso não é da sua conta. Atenha-se ao cumprimento do seu dever, que restringe-se a devolução do cidadão italiano à sua pátria de origem. O que você escreveu ao governo deles?

1. Comecei assim: "Silvio, amice mio, creio que Vsa. cometeu alguns erros básicos com relação ao extraviado/exilado/asilado, que deu origem a essa embaraçosa situação. Não me lembro agora, exatamente, o nome dele, mas contra todas as probabilidades deve ser mesmo apenas um, e não três, ou cinco, o número de exilados que o srs. querem/queriam de volta. Digo isso porque, como V.Sa. bem sabe, qualquer dígito acima de um, não chama a atenção. Três milhões de exilados, de depauperados, de adoentados, de perturbados, de acorrentados, de abandonados, de injustiçados são irrelevantes. Agora, um... Temos farto histórico de acolhimento de exilados políticos. Por exemplo, o experimentalista germânico, Dr. Mengele, em nossas águas banhou-se por anos sem conta. Integra o rol das minhas tarefas neste cargo sinalizar, com a devida discrição, a probabilidade de V.Sa. ter malversado o usufruto dos meios de comunicação. O Sr. há de concordar comigo que os referidos meios tem mandíbulas. Mas são dispersos. Tão logo uma presa mais atraente apareça em seu radar, as mandíbulas soltam a presa anterior e dedicam-se a posterior. Não seria nem o caso, atente bem, de “produzir uma notícia”. Seria apenas uma oportunidade de otimizar o déficit de atenção geral, exaltando uma curiosidade esquecida, que abrandaria os ânimos. Já posso ver as manchetes: “Itália tem costa litorânea maior do que a brasileira. Brasil se ufana com seus 8.000 km de orla marítima, ao passo que a viçosa bota italiana tem 8.300”. Não usamos as filigranas da diplomacia. Vero. Silvio, amice mio, mea culpa, mas as filigranas são uma dança. Ao passo que o Sr. não contou ao mundo as proezas geográficas, ou qualquer outra coisa, para distração das massas, não nos demos ao trabalho de bailar na cortina de fumaça". Parei nesse trecho, mas, senhor Escrivão, sabe o que estão dizendo? Que sua casa é perfumada à custa de um braseiro com folhas de alfazema e açúcar. A multidão pranteia. Finge-se que são silvos, e que o conteúdo desse pranto nasceu de ideologias tortas de classes abastadas, sendo assim preferível ignorar. Que fazer?

2. Já disse que isso não pertence a sua alçada. Que mais escreveu?

1. “Silvio, amice mio, tem idéia de quantos processos estão pendentes em São Paulo? Dezoito milhões. Confesso desconhecer se essa cifra restringe-se a São Paulo, capital, Grande São Paulo, ou o Estado de São Paulo. Suponhamos tratar-se do estado. Suponhamos que no Brasil existam 23 estados, apenas para arredondar. Ora, 23 x 18 milhões = 414.000.000. Percebo que percebes, Silvio, a complexidade do caso. Pois isso demandaria um processo, que tramitaria nas varas, e estando elas, de acordo com a lógica, com meio bilhão de casos pendentes, seria necessário entrar na fila".

“Esse egrégio cidadão, de fato um expoente, conseguiu a proeza de ser solicitado por duas nações - ao mesmo tempo - e nesse trecho, afianço-lhe, muitos cidadãos do meu país não despertam a mesma atenção por parte das autoridades. Confesso-lhe: de autoridade alguma, e avento até supor, de país algum. Ninguém os quer. Nasceram exilados. Diferentes de Fulano, cujo nome não recordo, mas que oficialmente está encarcerado aqui, e os srs. o querem/queriam, para encarcerá-lo aí. Mas, a fim de manter a nossa soberania, cujo livre arbítrio deve ser soberano, não estamos propensos a essa troca de cárcere, vem daí o motivo desta carta, e o pedido de desculpas, talvez não pelo desfecho, mas pela ausência das filigranas da diplomacia". Parei nesse ponto, excelentíssimo senhor Escrivão de Órfãos, preciso alerta-lo da situação em que nos encontramos, parte da freguesia está sendo dividida pouco amigavelmente, no presente momento faz-se muito difícil imaginar o desdobramento de tal cenário, além do que, ruídos de comunicação dificultam a ordem estabelecida, impedindo que homens de valor e posição sejam escolhidos entre a população da freguesia, que, como já se disse, pranteia.

2. Termine logo essa carta e me mande sem demora. Deixe que da freguesia e dos prantos cuido eu.

1. “Silvio, amice mio, um pouco de paciência, pois precisamos achá-lo. Nosso sistema penal está de acordo com os parâmetros vigentes, sendo então que a nossa população carcerária nada difere das três categorias aceitas na comunidade internacional: a dos encarcerados, a dos que deveriam estar encarcerados, e a dos que não voltaram ao cárcere. Estamos procurando. Órgãos policiais normalmente tratam esses cidadãos por “elementos” ou “suspeitos”. Nosso suspeito, pelo meu ponto de vista, preenche os dois primeiros itens. Criminal, pois matou 4 pessoas. Moral, pois não me soa moralmente correto matar uma pessoa, o que não dizer de 4.”

“Curioso, pois nesse instante me ocorre que não sei o nome do Fulano, mas já sei seus crimes. Acho que é uma questão de educação. Desde criança os adultos ao meu redor não faziam a menor cerimônia em revelar as mazelas alheias, embora sempre com a preocupação de garantir-lhes o anonimato. Sabia-se do delito cometido, conhecia-se o rosto do infrator, seus filhos e a até a casa onde morava. Mas não o nome. Quando muito, e somente pela necessidade de comunicar, usavam de uma antiga transgressão - a de um sujeito que subtraíra nossas divisas, colocando ouro em pó no interior de pequenas figuras religiosas entalhadas em madeira, mandando-as para limites além de nossas fronteiras. Não se sabe se algo foi apurado com discernimento sobre esse delito, mas o mesmo ganhou um adjetivo que atravessou décadas: Santinho do Pau Oco. Talvez não seja o caso do Nosso Fulano". Agora, realmente sr. Escrivão de Órfãos, meu telefone não pára de tocar, estão fofocando que o sr., para remendar a situação, contratou a toque de caixa, doze carpinteiros, quatro ferreiros, um oleiro, um alfaiate e dois sapateiros e os incumbiu de formar uma força local urgente, com prazo de até quinze dias, para solucionar os problemas da freguesia e dos prantos. Isso é verdade?

2. Quantas vezes será necessário lhe dizer que o assunto do momento está fora de seus afazeres? Finalize a carta.

1. "Silvio, o Nosso Fulano, uma situação fascinante, que o deixa muito parecido com os que servem para Sua Majestade, no Reino Unido. Nos filmes são chamados de James Bond, e na vida real tem licença para matar. Nosso fulano matou 4. Por motivos políticos, o que não deixa de ser razoável. Nada vil ou ordinário, como por exemplo um prato de comida ou um coração partido. Nada disso. Fulano, o nosso, matou por uma idéia. Porque evidentemente discordavam das idéias dele. Ah...chego a suspirar, é algo que estarrece os corações mais cândidos. Fulano não sacou a arma para se defender, ou defender família e filhos de uma situação de risco iminente. Nos contos de fada tal gesto seria catalogado como legítima defesa. Silvio, escusa, mas já nem sei o que dizer, que va fare? Na nobreza da política os nobres se reconhecem e se repastam de seus feitos. Noutras culturas esse assunto já estaria encerrado, mas a nossa persiste em lançar uma mácula, não se sabe ainda de qual proporção, sobre dois países que tem uma história conjunta, feita de realizações de esperanças e não de derramamento de sangue". Então, que achas, está a contendo, a missiva? Esse assunto já me esgotou. Digo a vossa excelência, apenas, e com todo o respeito, que pelas vielas continuam sussurrando que o sr. perfuma vossa casa com essências de jasmins, madressilvas, malva cheirosa, damas da noite e manacás, se recusou a prestar qualquer tipo de depoimento, repetindo apenas que toda essa esbórnia foi um movimento natural da estação e que os pranteadores devem prantear noutra freguesia. Isso é verdade?



ps ( O Escrivão de Órfãos, além de não me responder, mandou-me carta de demissão pelos correios. Foi visto recentemente dizendo aos amigos que com toda essa chuva, grandes são as chances da freguesia tornar-se um paraíso).


(Imagem: Kantha, Bengala, Índia. Cerca de 1900, bordado de algodão em algodão)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 07/03/2015
Reeditado em 10/08/2020
Código do texto: T5161937
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