Gregor Samsa (ou da atualidade da Metamorfose de Kafka)

De início, um breve esclarecimento acerca de Gregor Samsa, para os que não leram a magnífica obra de Franz Kafka, “A metamorfose”. De repente, sem mais nem menos, depois de uma noite de sono inquieto e sonhos angustiantes, Gregor desperta metamorfoseado em um inseto e não pode mais se levantar, ir ao trabalho de caixeiro viajante, com o qual sustenta os pais e a irmã caçula, nem fazer nada mais de suas atividades do dia a dia.

Li este livro, pela primeira vez, há muito tempo atrás, na faixa dos vinte anos, e já naquela primeira leitura causou-me um forte desconforto e angústia a situação vivenciada pelo personagem. Naquela época acho que ainda não trabalhava, ou estava em meu primeiro emprego, vivendo na casa de meus pais, e sem grandes responsabilidades. Apesar do incômodo suscitado em mim a situação descrita na trama, não pude dimensionar o impacto daquela situação, quando um indivíduo torna-se, de uma hora para outra, impossibilitado de ganhar dinheiro, de produzir riqueza e de fazer parte da engrenagem do capital, que parece ordenar e sustentar as relações humanas.

Depois, com o passar dos anos, na medida em que comecei a “andar com minhas próprias pernas”, a pagar minhas contas, a assumir sozinho as consequências de meus atos, e construir outras relações mais amplas na sociedade (como pai, marido, funcionário público), a dimensão da tragédia de Gregor foi se agigantando à minha frente. O que sou, ou, o que somos, se tirarmos o dinheiro de nossas vidas? Se não pagarmos nossas contas, os impostos, se não proporcionarmos o sustento de nossos lares, o que nos restará? Como nos verão nossos pais, filhos, esposas, maridos, amigos, se tirarmos simplesmente de nossas vidas a capacidade de produzir riquezas, de consumir? Haverá amor, tolerância, compreensão, solidariedade, se simplesmente amanhã acordarmos transformados em baratas, impossibilitados de levantar da cama, ir ao trabalho e pagar as contas?

Parece-me, e aí esta a atualidade e a tragédia de Kafka, que hoje, mais do que na época em que a obra foi escrita, o dinheiro, a ostentação e o consumo forjam e formam as relações interpessoais e os indivíduos. Há um individualismo e uma vaidade que se exacerbam, em tempos de redes sociais, de “selfies”, de se mostrar que se é e está feliz porque se comprou um carro novo, fez uma viagem, ou se encontra cercado de amigos em uma praia, um bar ou pizzaria.

Há aí o triunfo da superficialidade, da cretinice e da falta de conteúdos de consumidores autômatos, que buscam, a despeito dos meios empregados e da ética, ter, ou aparentar ter. Bens de consumo se confundem com sensação de prazer, isto com felicidade e esta com objetos de prazer. Um amálgama confuso, um caleidoscópio formado por objetos de consumo, falsos sorrisos, gozos fugazes em forma de drogas, compras e coitos. Tudo devidamente registrado em auto retratos expostos em redes sociais.

Quanto ao secular e quase universal medo de baratas? Talvez tenha surgido com o advento do dinheiro (que se confunde com a própria formação das civilizações e da humanidade), dos modos de produção, da riqueza e do consumo. Talvez a ojeriza a tão minúsculo e abjeto inseto esteja no fato de temermos um dia acordar metamorfoseados em um, impossibilitados de levantar, ir ao trabalho, pagar nossas contas, comprar,consumir e registrar nossos sorrisos em “selfies”. Afinal de contas, fotos de baratas e outros insetos não ficariam bem nas “time lines” das redes sociais.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 14/03/2015
Reeditado em 11/10/2016
Código do texto: T5169638
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