Crônica de São João

Seu Roque

Verdes, vermelhas, azuis, amarelas, brancas, Verdes, vermelhas, azuis, amarelas, brancas...

As bandeirinhas seguiam numa mesma seqüência de cores, formavam cordões diagonais por toda extensão da Rua Grande: do começo não se via o fim, lá pelo meio tinha uma elevação, uma ladeirinha que dava a impressão que todas as cores eram uma só. O vento misturava e separava, agitava, brincava como as novas companheiras que vinham de junho em junho. Alegria, festa e cor, isto era a novidade da festa esperada; balões e fogos a forma do céu participar das homenagens a São João. Na primeira barraca as argolas, uma duas, três... ganhei a garrafa de cajuína. O que eu queria mesmo eram as notas dobradas, mas para isso a sorte não ajudava; a disposição das caixinhas não dava espaço para a argola entrar. Tanto tempo até descobrir que o que mais se quer, mesmo perto dos olhos, está sempre fora do alcance.

Hoje não tem cor: as paredes são brancas , os uniformes verdes, os remédios – líquidos de coloração imprecisa, as visitas não usam vermelho, rosa ou amarelo limão, usam tons de camaleão para parecerem parte do ambiente. Nada de vento, de bandeiras, laços de fita ou batom. Apenas a incerteza do amanhã riscada pelo calendário: primeiro de junho, chegou o São João.

Em casa o cheiro doce da pamonha. O milho verde passado no ralador, a massa coada e temperada com açúcar e manteiga, vestida de palha, amarrada pela cintura feito gorda em vestido de festa, cozida e pronto, derretendo na boca com o gole de café. Canjica, xerém, munguzá, bolo. Vindos do rei milho ou do milho rei; mesmo que todo interesse fosse a barraca de D. Zita: cachaça e tira-gosto, fígado alemão, charque, torresmo, tripa de porco, camarão de rio e tudo que se engole para aliviar o gosto da cana pra sentir o gosto de novo. Ter coragem de paquerar e botar tudo pra fora no balanço da canoa.

Na outra cama a papa branca, o copo de suco, as bolachas e o chá me fazem suspirar, uma vontade danada de engolir, doce, salgado, frio, quente, sei lá, qualquer coisa até saliva serviria para molhar minha garganta, satisfazendo a barriga e tranqüilizando a alma, mas não vem nada. Sinto como se fosse três pedaços: cabeça, garganta e corpo. A primeira está aqui funcionando como pode misturando o hoje com o passado, na garganta o tubo toma conta e o corpo não manda mais em si, é boneco de exames, picadas e material dos estudantes que tem como estágio dar banho, medir pressão e ver se tem febre.

Sobrando uns tostões a barraca de tiro era o alvo da noite e apostar? Nem lembro o que é a sensação de ganhar. A vida dura de ser o filho mais velho, o sítio, o casamento desfeito, outra mulher, três crianças, cinco passagens, a cidade de São Paulo. Nesse tempo não tinha concurso, trinta anos depois a aposentadoria pela Prefeitura. Os planos de voltar a caminhar pela Rua Grande, o agreste, o sol, o calor e a cor. Uma casinha e o dinheiro no Banco todo mês para as despesas. A cadeira na calçada, conversa com os vizinhos, feijão verde tirado do quintal. Ganhar? Perdi. Azia, enjôo, sangramento. O diagnóstico tardio, as sessões não resolveram, vai operar.

A bota de sola de borracha tinha se moldado no pé tamanho 41, fazia parte dele no trabalho de sol a chuva. Outra coisa o sapato de festa, um verdadeiro martírio: curto no calcanhar, estreito na frente, só se eu tirasse uns dois dedos ou a meia. Tirei a meia, aliviou, guiado pelo som da sanfona cheguei no chão de terra com folhas de eucalipto, casais agarrados e o triangulo marcando o passo: telelém, telelém, telelém. Dancei até sentir os pés molhados, não de suor, foram as bolhas que estouraram. Voltei pra casa descalço, o sapato ficou no forró como lembrança.

Sinto meu corpo leve, livre dos aparatos, procuro um chinelo e não acho, saiu assim mesmo, conheço o caminho, sem pedras ou poças de lama, voltar é fácil e ligeiro. Pego a marginal, parece feriado, sem carros e dando para ver o céu, vou ligeiro, vou correndo, está anoitecendo, corro ainda mais. Vejo as luzes das barracas, as pessoas, o som das vozes é Luiz Gonzaga tocando. Verdes, vermelhas, azuis, amarelas, as bandeiras se agitam, não sei como os sapatos voltaram para os meus pés, não ouço fogos mas vejo um balão subindo, começo a subir a Rua Grande, do meu lado um companheiro diz que chegou a minha vez.

Cristiane – 07/06/2007.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 07/06/2007
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