NOVO ENTREVERO                    
                 “Se um homem tomar sua mulher, não há vingança melhor
                  do que deixá-lo ficar com ela.” – ( Sacha Guitry )
 
Outra vez defrontam-se Altamiro e o pobre do Arlindo, este vítima da maledicência de gente que não tem nada para fazer e passa o dia dependurada na janela, procurando encrenca.
Algum sábio anônimo teria profetizado: “Deus deu 24 horas para cada um cuidar, diariamente, da sua vida, mas tem gente que quer fazer hora extra na minha.”
E tem mesmo ... e muita!
Algumas infelizes criaturas, como os ex- detentos, ficam estigmatizadas e passam a responder por qualquer acontecimento similar, tal qual D.Juan e Casanova, a quem atribuíram a sedução de dezenas de belas damas, das quais nem sequer sentiram o cheiro.
Bem – não vou me atrever a dizer que o caso do Arlindo esteja, exatamente, dentro desses parâmetros, mas eu simpatizo com ele e não me envergonho de aliviar sua barra; ele é um pobre homem, que carrega o jugo universal de ser achegado em mulher.
Nietszche, da mesma forma que eu (sem comparação, é claro), vem em socorro do meu  pupilo, quando afirma que “Há sempre alguma loucura no amor. Mas há, sempre, um pouco de razão na loucura.”
 
No duro embate da vida, vamos encontrar o Arlindo na biboca do Serafim.
Não sabemos com que dinheiro, mas o fato é que ele está só e, sobre a mesinha, alinham-se diversas garrafas de cerveja e (Deus do céu!) meia dúzia das tenebrosas empadinhas do “estabelecimento”, a cujo maléfico efeito,  o rubro-negro, tal qual urubu, está imune.
Do nada, surge o Altamiro com o colete aberto, a gravata frouxa, o pincinês desafiando a gravidade e aquele horroroso bigodinho sinalizando tempestade iminente!
 
- Ah, então o nobre cavalheiro encontra-se numa boa! Pelo visto, algum desavisado ficou sem sua carteira, hein, canalha – diz, entredentes, o Miro, plantando as mãos sobre a mesinha, fazendo tilintar as garrafas, que balançam perigosamente.
- Qual é, cara? Bi cul, bródi!
- Ora, ora, então temos aqui um punguista bilíngue. Era só o que me faltava!
- Calma aí, seu Miro, escutei  isso num filme da TV e um amigo culto como o senhor me disse que era “fica  frio, irmão”.
- Tá certo. Só que você ouviu mal e a pronúncia correta é “Bi cul broder”.  Agora, quem vai ficar frio mesmo vai ser você, depois que eu apertar esse imundo gasganete, até você se borrar todo,  seu safado – vociferou Altamiro, com as veias do pescoço no limite da resistência.
- Péra  aí, amizade, que barato é esse, companheiro?
- Primeiro, vai esquecendo “amizade” e “companheiro”, seu urubu velho.  O negócio é que viram você, outra vez, ciscando perto da minha casa -  sussurrou o Miro, dissimulando a raiva, mas empunhando, ameaçadoramente, uma garrafa de cerveja.
Arlindo, num extraordinário reflexo de sobrevivência, levanta seu copo e estende-o ao Miro para ser cheio, balbuciando um tímido “muito obrigado”.
Apanhado de surpresa, a vermelhidão irada do rosto do Altamiro, passa ao lívido da estupefação e ele, maquinalmente, enche o copo do famigerado flamenguista e o seu, também, sentando-se em seguida e tomando-o de um só sorvo.
- Bempigarreou o atual da Edileuza -  vamos aos finalmente. Afinal, o que ocorreu?
- Táva eu andando pelo morro e, quase em frente à sua casa, um motocicrista passou na toda numa poça e me deu um baita banho de lama. Foi isso!
-  Só isso -  extravasou o Miro, enchendo novamente o seu copo.
- Qué dizê, a Edi... dona Edileuza, por  acauso tava na janela e viu  tudinho e, como alma caridosa que é (sorriso disfarçado) ficou com pena e fez eu entrar no seu quintal e me deu a manguêra do jardim pra eu tomá banho...
-Você teve coragem de ficar pelado na frente da minha mulher, seu nojento?
- Nunquinha, seu Miro. Fui lá  pro fundo do quintal e aí tirei as rôpa, espremi elas dereitinho e despois vistí tudo outra vez. Juro! (fazendo o característico cruzamento de dedos às costas).
- Mas acontece, seu marginal, que alguém viu você entrando pela porta dos fundos. E não me venha dizer que foi passar suas roupas a ferro!
- Craro que não, seu Miro, mas aposto qui não falaro pru senhor que eu sai despressinha de lá, despois de tomá o cafezinho quente que dona Edileuza me deu  (enfatizando, maldosamente, os dois últimos vocábulos).
- Não, realmente não me disseram nada, mas tem muita gente maledicente, mesmo. De qualquer forma a Edi vai esclarecer tudo e, se ela confirmar, o seu óbito – pulha – fica adiado “sine die”.
- Num tem pirigo, seu Miro, ela vai confirmá tudinho! – conclui o Arlindo, com novo sorriso disfarçado.
- Tudo bem, Arlindo, e como a trégua está acordada, fica esquecida a querela e vamos amenizar o papo e baixar a guarda.
-  Serafim, berra o Miro,  desce mais duas e tira esse negócio daqui (as empadas remanescentes) porque estou nauseado e as pobres moscas que se atreveram a provar o tira-gosto já estão espalhadas pelo chão.
- Troca por ovo cozido, Será.  Hoje a conta é minha! – arrematou, aliviado, o Arlindo, apertando fortemente a medalhinha de S.Jorge contra o peito..
 
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(dedicado aos valentes homens que dão a vida pela vida)
Foto - Internet
paulo rego
Enviado por paulo rego em 20/03/2015
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