Contradições na Maria Antonia

Dias atrás tive uma reunião no prédio do Centro Universitário Maria Antônia, o famoso CEUMA. Deixei o carro na Zona Azul e fui andando pela calçada até chegar ao destino. Discussões sobre Direitos Humanos me acompanham desde a adolescência e de certa forma, me ajudam a não passar incólume, quando observo um semelhante na rua, dormindo no chão. Dormir é coisa sagrada, tão boa e tão necessária que ser feita à revelia em lugar público, no meu ponto de vista, entra na categoria dos absurdos sociais. O ato de dormir tem um viés privado, não é algo a ser compartilhado com desconhecidos. No meio do caminho entre o estacionamento do automóvel até o prédio do CEUMA, encontro um jovem, aparentando uns vinte e poucos anos. A visão do sono daquele moço foi a mais forte de todos os outros que presenciei. A boca esbranquiçada, entreaberta, exibia dentes tortos e amarelados. O moço tinha um olhar parado, fixo no nada. Era nítido que dormia, pois seu abdômen anunciava movimentos de respiração. Somente o abdômen anunciava o sono, o resto do corpo não. O olho era parado, semi aberto e vermelho. Não sei por qual motivo, mas lembrei-me da curiosidade infantil. Uma criança que passasse ali, provavelmente iria se perguntar: “Por que ele está assim?” Fiquei pensando o que responderia e penso que independente da resposta, provavelmente a criança se entristeceria por começar a entender como funciona esta sociedade não alternativa.

Continuei a vida. Entrei no prédio, participei da reunião e antes de concluí-la precisei descer para renovar o tempo do estacionamento. Passei pelo moço mais uma vez e parece-me que ele tinha mudado de lugar. Encontrei uma vaga melhor, e assim, estacionei o carro bem próximo a ele. Ao olhar os transeuntes, reparei que alguma coisa estava estranha. Era nítido um incômodo, um burburinho. O que seria? Ao atentar-me para a reação das pessoas, deparei-me com uma cena no mínimo, curiosa. O jovem usava calças de moleton e apesar de ainda estar dormindo, seu corpo anunciava uma visível ereção! Sim, o moço semi morto, de olho vermelho, onde a vida que antes só era percebida pelo abdômen em movimento, agora era também evidenciada por uma relativa potência. A reação das pessoas, muitas vezes em grupo ou dupla, quando deparavam-se com a cena, comentavam entre si, davam risadinhas, robusteciam e inconformadas, seguiam caminho. A reação mais curiosa foi a de um jovem de barba, que ao presenciar o moço no chão, piscava tanto, mas tanto, que a cada abertura de pálpebra era como se quisesse ter certeza se o que via era realmente verdade.

Fiquei algum tempo no interior do veículo e enquanto preenchia os dados da Zona Azul, pensei em fotografar aquilo. Mas agradeci pelo fato da máquina estar na sala de reunião dentro do prédio. E também pensei que poderia ser uma falta de respeito fotografar aquele rapaz. Ele não estava em condições de autorizar direito de imagem. Não é porque é um jovem miserável que eu deva aproveitar-me da situação e publicar a coisa. Já chega o sono público. O curioso foi perceber que a invisibilidade de outrora foi totalmente derrubada com a nova performance do rapaz. Era possível que aquela potência era involuntária, pois o olho dele continuava parado, semi morto. Mas o mais interessante era perceber que a evidência de seu corpo colocava-o em diálogo com o público, obrigando as pessoas a olhá-lo.

Dos anos que frequento este lugar, essa foi uma das raras ocasiões em que percebi a miséria ser notada pela classe média alta que passa por ali todos os dias. Esse “diálogo forçado” de certa forma remeteu à própria história do CEUMA, quando em 1968 foi palco de uma das mais importantes reivindicações pela democracia no país. De um lado, os mackenzistas, a ala conservadora, em favor da ditadura, e do outro, os uspianos, entre eles, o famoso Florestan Fernandes, reivindicando a pauta democrática. O conflito de classes perdura em cenas cotidianas que obrigam ricos e pobres, mesmo que superficialmente, a conviverem o mesmo espaço. A cena envolvendo este jovem evidencia estes conflitos.