Bala de Maracujá

Imagem: Desiree Franco

Nem bem as primeiras cores, cheiros e ruídos daquela manhã de quinta-feira se apresentaram e já deu para perceber que havia algo de diferente no apartamento ao lado.
Passos no corredor, a chave girando na fechadura do apartamento 22, indicavam a possibilidade de que alguém o tivesse alugado. Pensei que talvez fosse a moça da limpeza. Não, improvável, pois além de ser muito cedo, ela sempre vinha às segundas-feiras, desde que moro aqui, ela sempre vem nas segundas-feiras limpar os apartamentos dos que contratam seus serviços.
Levanto, ligo o computador, banheiro, fazer café, nessa ordem.
Começo vendo os jornais on line; as desordens, crueldades, banalidades, filmes e gols , idiossincrasias da cidade e do mundo.
Apartamento parede-meia dá para ouvir muitas vezes até um murmúrio, dá para ouvir um chuveiro sendo ligado, a espera pelo aquecimento da água, também um botão girando, “clique”, o braço da vitrola, o som dos sulcos do disco, a música suave invade meu mundo, vinda de outro.
“Je ne sais pas qui tu peux être
Je ne sais pas qui tu espères
Je cherche toujours à te connaître
Et ton silence trouble mon silence”
Alegro-me, seja quem for; meu vizinho gosta de música e convenhamos, música boa, apenas por isso já poderia considerar-me, não diria feliz, ao menos alegre, meus vizinhos não costumam ter um gosto musical tão apurado, também não têm nenhuma delicadeza com o botão do volume.
Tento prestar atenção no jornal em minha tela, mas que dificuldade! Além de ser um amontoado de mentiras e idiotices, existe a música tocando tão perto.
Mesmo assim firmo meus olhos e cérebro nas notícias. Convenhamos; esta atenção voltada ao apartamento ao lado não deixa de ser um pouco de bisbilhotice e eu também não tenho todo tempo do mundo; logo teria que tomar banho e sair trabalhar.
Tomo uma xícara de café, tentando me manter em meu mundo; mas o som do chuveiro acaba e pelos passos, consigo adivinhar: são passos femininos.
De repente: - “Atchim”, ou um som muito parecido com isso.
Agora já não havia nenhuma dúvida, o espirro (que mais pareceu um sussurro) foi de uma mulher, sei que o desconhecimento sobre a alma feminina é cantada em verso e prosa acho que desde sempre, mas um espirro feminino não chega ser exatamente um segredo.
Então fazendo uma continha besta de cabeça, a lógica da equação começou a se desenrolar: Eu tinha vizinho novo, que era uma vizinha, devia ter mudado no dia anterior, gostava de tomar banho quente, também tinha uma vitrola, portanto ouvia discos de vinil e também gostava de Françoise Hardy, tirando o banho quente, tínhamos algumas coisas em comum (que clichê!).
Som de porta de guarda-roupa abrindo, cabides se movendo e neste momento o telefone celular da minha vizinha tocou. Voz bonita, algo entre uma flauta doce e uma secretária eletrônica.
- “Oi mana, mudei ontem. O apartamento é legalzinho, não é muito grande, mas acho que vai dar. Estou indo trabalhar, depois, se der tempo vou comprar o livro novo do Mia Couto e correr para o aeroporto.
Epa! Mais alguma coisa em comum, e o diabo é que eu tenho esse livro.
- “Tchau mana, beijos na mamãe e no papai, vamos pra ai no final de semana”.
Voltando as análises combinatórias da minha imaginação: Gosto pela Hardy, música de vinil, Mia Couto, pai e mãe vivos; calculei que minha vizinha devia ter entre 40 e 60 anos, o que não deixa de ser uma amostragem bastante extensa. Como também eu poderia estar totalmente errado, poderia se uma meninota com bom gosto, difícil, mas não de todo improvável.
E o livro do Couto ali, do meu lado. Mas como diabos eu vou fazer para dizer a ela que tenho o tal livro? Não poderia simplesmente dizer que a ouvi ao telefone. Não. Seria demasiado deselegante.
E quanto ao aeroporto? Que iria fazer lá, se mudou ontem e iria visitar os pais no final de semana? Talvez comprar a passagem, apesar de se poder fazer isso hoje em dia sem sair de casa. Tudo pode ser como tudo pode não ser.
E aquele verbo “ir” conjugado na primeira do plural também me soou meio estranho.
Caramba! Pensei comigo mesmo; nem conheço a pessoa e já fico pensando coisas e tirando conclusões.
O lado A do disco já tinha acabado faz tempo, barulho de chave. A moça vai sair. Eu poderia arquitetar uma coincidência; sair também, abrir a porta e dizer o “bom dia” mais inocente do mundo. Não houve tempo. A fechadura girou a abertura e a saída, passos apressados no corredor e na escada (esqueci-me de dizer que moramos no segundo andar).
Corri até a janelinha, deu para ver um pedaço do vestido vermelho florido, um pouco de cabelo acastanhado, um suave rastro de Chanel n.º 5 e um delicioso cheiro doce e azedinho de bala de maracujá.
Caí na realidade, tomei meu banho, fiz a barba, coloquei alguma roupa e saí para enfrentar o dia. Desci pelas escadas, o maracujá e o Chanel ainda estavam lá.
Na portaria, o bom dia ao porteiro e a pergunta inocente e inevitável:
- “Tenho vizinho novo Manuel”?
- “Tem”. – “Mudou ontem”. – “O marido chega de Londres hoje pela noitinha, estão juntos há pelo menos 5 anos”.
Com o maior gosto de cabo de guarda-chuva disparei:
- “Como é que você sabe de tudo isso”?
- “Ora, todo mundo que muda para cá preenche uma ficha, o senhor também tem uma, além do mais eu sou o porteiro, eu tenho que saber tudo”.
- “Bom dia Manuel”.
- “Bom dia”.
Sai para rua, o dia estava maravilhoso, ensolarado, alheio a minha desilusão. Sai para rua com uma enorme vontade de tomar a primeira condução para Pasárgada.