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[Des]Memórias


     Tentei fazer uma viagem a cidade de minha infância. Lembrei-me das serras, do morro de São José, da igreja, do prédio da prefeitura, da casa de meus avós, da calçada de meu tio, do sítio da família que ficava bem próximo da cidade, da casa de minha tia Chiquinha, próxima do rio. Das mangueiras. Dos banhos de rio. Dos olhos de Luiza, a silenciosa e exuberante mulher de vestidos coloridos.

     Mas, terminada a viagem percebi que pouco ou quase nada havia encontrado de mim. Não vivi naquela cidade. Era na fazenda, distante seis quilômetros da cidade, que estavam plantados os meus sonhos.  Era nos alpendres da casa da fazenda que meu mundo se desenhava. 

     Meus limites eram delineados pelas cercas dos currais. Tudo em mim cabia naquele lugar. Foi lá que vivi minha infância. Que sonhei ser “médica de bicho”. Doutora. Professora. Foi lá que construí castelos, de areia, lama e sonhos.

     Foi na fazenda que andei a cavalo, voei em cabos de vassouras, imaginei alcançar o céu subindo no topo de uma serra, incendiei uma plantação de algodão brincando de casinha, criei mundos paralelos e fui uma criança livre e feliz.

     Lá, entre bichos e pessoas, a vida parecia muito simples. A mesa era sempre farta. As redes abrigavam os sonhos. Os banhos de rio e de chuva lavavam o corpo a alma. As maldades eram inventadas. Os medos nós mesmos criávamos. Meu maior medo era de dentista (medo que carrego até hoje). 

     A cidade de minha infância não me acompanhou ao longo da vida. Perdi o contato com ela na adolescência. A estrada da vida me fez caminhar por outros caminhos e me levou para outras cidades. Lugares que me adotaram e onde criei raízes.

     Dela, da cidade de minha infância, guardo lembranças familiares. O sabor da comida gostosa de vovó, que me chamava de nega feia da bunda grande. O olhar carinhoso e acolhedor de vovô que nos recebia festivamente com suas histórias e cordéis. A lembrança das raras visitas de tia Raimunda, sempre alegre. Adorava brincar com seus livros e sapatos.

     Quando encerrei a viagem percebi que as fronteiras de minha infância estão separadas, por um rio de deslembranças, da cidade que não me viu crescer, que não me pertence.  Minhas lembranças mais antigas, as fronteiras interiores, me remetem a um tempo anterior a cidade. Um regresso a mim mesmo. Um retorno a criança que sou desde sempre, não ao lugar ou a cidade.
 
 
 
Este texto faz parte do Exercício Criativo - 
A Cidade da Minha Infância. Saiba mais, conheça os outros textos http://encantodasletras.50webs.com/acidadedaminhainfancia.htm 
Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 23/03/2015
Reeditado em 08/08/2015
Código do texto: T5180063
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