Woodstock

“ Recife. Ponte Buarque de Macedo.

Eu, indo em direção à casa do Agra,

Assombrado com a minha sombra magra,

Pensava no Destino, e tinha medo ! “

(Augusto dos Anjos: As Cismas do Destino)

Assim como o “...filho do carbono e do amoníaco..” eu também, alta noite, atravessei a Ponte Buarque de Macedo, no Recife, mas no outro sentido, não o da casa do Agra, o manicômio, do soturno Poeta e sim no sentido oposto, voltando da revelação, da catarse daqueles momentos vividos.

Nunca poderia imaginar que ali seria minha “estrada de Damasco” e que a verdade cairia sobre mim de forma total e de uma vez pra sempre.

Como foi possível na ida ser um e na volta outro já diferente e definitivo, no espaço apenas de duas ou três horas?

Lembro que saímos do Pátio de São Pedro, embalados por algumas doses, na direção do velho cinema São José e suas tradicionais sessões da meia-noite, andando pela suave noite recifense, calma, tranquila.

Lá estava o enorme cartaz: “WOODSTOCK, Três dias de Paz e Música” !

O quê era aquilo? Nada sabíamos sobre o festival que tinha acontecido um ano antes, no final de agosto de 1969 num lugar perto de New York.

Naquela noite de novembro de 1970, estávamos ali, eu e meu primo Fábio (paulistanos de Santana morando então na capital pernambucana) olhando para o cartaz colorido, e já nos dirigindo para bilheteria e entrar.

Poucas pessoas entrando, fomos logo escolhendo um bom lugar, o filme ia começar. Nas primeiras cenas, os preparativos, multidões chegando, outras pessoas construindo e erguendo as famosas torres de som e o palco da hecatombe por vir.

Aos poucos começa uma música por um conjunto de três vozes afinadíssimas e que se completavam no timbre, na letra, fui percebendo, falava justamente do festival, de alguém que estava indo para lá, onde esperava encontrar a própria liberdade da alma, juntando-se as bandas de rock. Muito tempo depois soube que se tratava da balada homônima "Woodstock", da lendária compositora e cantora canadense Joni Mitchel, e que transformou-se no hino do festival e de uma geração.

De repente no palco e uma voz anunciando: “Mr. Richie Havens” !

Entra aquele negro alto, expressão séria e sem olhar para o público, vestindo uma espécie de bata africana, empunhando um violão, senta-se num pequeno banquinho, diz alguma coisa entre uns acordes iniciais, e súbito, atravessa nossa alma com as palhetadas lancinantes de "Freedom" na sua voz gutural e ao mesmo tempo maviosa de extraordinário cantor.

Freedom !

Freedom !

Sometimes i fill like a motherless child...

Ainda hoje ressoam no meu peito e trazem sempre que a ouço, a mesma emoção ! Seu estilo de tocar, usando o polegar da mão esquerda na montagem dos acordes e a sonoridade das palhetadas que conseguia foi algo alucinante para mim. Muitos anos depois sua interpretação de "Here Comes the Sun", (outro hino dos beatlemaniacos) tornou-se, junto a sua magistral versão de "License to Kill" de Dylan, entre muitas outras, definitivas.

Em seguido, já transido, entra outro jovem no palco, cabelos molhados de suor, expressão meio sério, meio amalucado, calçando botas azuis com estrelas brancas, e dá início aos primeiros acordes, inconfundíveis para mim, beatlemaníaco de primeira hora, de "With a Little Help from My Friends".

Difícil expressar o significado dessa interpretação. Talvez tenha sido entender pela primeira vez que aquilo que é belo nem sempre é final ou definitivo, pois pode ainda se tornar mais belo, e arrebatador, quando outro artista verdadeiro fizer desse algo, sua forma particular de expressão estética.

Foi isso que Joe Cocker fez com essa canção, tornou-a mais bela e definiu de uma vez pra sempre, sua outra forma de Beleza, que a maioria de nós, fanáticos pelos Beatles, desconhecíamos.

Logo depois sobe ao palco um jovem louríssimo, longos cabelos e sobrancelhas quase brancos, um albino no Rock?

Empunhando uma guitarra Rickenbaker assim meio sorridente começa a entoar os acordes incendiários de “Mean Town Blues”, pareciam duas guitarras em uma. Na metade da musica destrói tudo que poderíamos entender de harmonia do blues com um longo solo de slide arrasador. Naqueles momentos, todos nós fomos alçados a um novo estagio estético muito além da mera arte da música e que nos atravessou como uma torrente que parecia fluir das seis cordas flamejantes de sua guitarra: Johnny Winter!

Em seguindo uma banda, um conjunto, como se dizia então: The Who !

Quem ?

Um tal de Roger Daltrey cantor, um guitarrista meio doido Pete Towshend, um baixista endiabrado, John Entwistle e um baterista, ah o baterista, Keith Moon, o cara solava na batera! Nunca tínhamos ouvido falar. Prá nós em termos de conjunto o que não era Beatles, era porcaria, ora. Ainda mais sendo anunciado que tocariam uma ópera ! Ah tá...

Mas, ledo engando, ali estava o embrião do rock que se faria na década seguinte e a raiz do heavy metal nas composições magistrais de Pete Towshend.

O cantor Roger Daltrey mostrando quem realmente era ao interpretar “See me Fill me” da Opera Rock Tommy de autoria de Towshend!

De repente uma forte chuva começa a ameaçar cair e de fato caiu torrencial na Yasgus Farm transformando tudo em lamaçal onde multidões se divertiram escorregando loucamente, não sem antes serem insufladas pelo narrador do festival a gritarem para impedir que chovesse:

No Rain !

No Rain !

No Rain !

A multidão clamava mas mesmo assim choveu forte mas ninguém ligou todos estavam felizes naquele lugar mágico.

Logo depois um anjo baixa no palco, uma mulher pequena, nem feia nem bonita, grávida de seis meses, com um enorme Gibson, faz um discurso dedicando a canção ao marido David, que estava preso por protestos contra a Guerra do Vietnam, começou com sua voz maviosa a emocionar a todos com a canção de protesto “Joe Hill”, emendando na não menos polêmica “Drugstore Truck Driving Man” : Joan Baez, simplesmente a maior interprete do mestre Dylan.

“ Agora que vocês vão ouvir música maluca, pode acreditar” , a bela Grace Slick anunciou quando os acordes do Jefferson Airplane tomou de assalto o palco, com "Volunteers of América", e logo depois "Somebody to Love", mostrando ali uma das maiores bandas de rock de todos os tempos.

O cara entra empunhando uma enorme guitarra Gretsh vermelha e dispara uma sequência de acordes ultravelozes nos deixando pirados já de cara , quem ? A guitarra mais rápida do oeste, Alvin Lee e seu grupo Ten Years After, e sua canção símbolo "I Going Home".

Como explicar a emoção louca em nosso coração ao sermos envolvidos pelo solo alucinante de Alvin Lee ? No meio da música emenda em "Blue Suede Shoes" aí meu caro, entramos em órbita no chão mesmo.

Já se falou muito que um dos grandes trunfos dos Beatles, afora as canções icônicas, são seus famosos backing vocals, ou seja, os coros nos refrões. Com isso criaram belezas definitivas sem falar no timbre dos vocais. Ledo engano. Era possível muito mais com tal matéria prima.

Três jovens sobem ao palco, numa apresentação acústica, atacam o clássico "Blackbird" e aí, aquilo que entendiamos ser possível apenas nos dedilhados de George Harrison, é levado a outro estagio de beleza pelos harmônicos de Stephen Stills, os agudos maviosos de David Crosby e a segunda voz mágica de Grahan Nash.

Crosby, Stills e Nash também marcaram pra sempre a canção símbolo do festival e nos levou ao delírio com "Suite: Judy Blue Eyes".

Um pequeno parentese (

Como entender tudo aquilo que acontecia na tela do cinema onde eu via que a expressão musical não se restringe a standards e sim pode ser levada a outro estagio de criação quando artistas verdadeiros se expressam sem concessões e liberdade.

Para um então jovem amante dos Beatles como eu, de repente se escancara a porta de outros estilos musicais que desde então passei a amar e seguir.

Anos depois vi que esse filme apenas mostrou algumas apresentações e não tudo, pois muitos artistas não permitiram que aparecessem no filme devido à qualidade do som e imagens ruins, afinal estávamos em 1969. Entre os muitos que não vimos lá estavam a deusa do blues Janis Joplin, a banda mais expressiva do southern rock , Creedence Clearwater Revival, Greatful Dead, entre muitos outros e mesmo aqueles que foram mostrados no filme, interpretaram outras canções que não foram mostradas, afinal o filme era apenas um documentário de pouco mais de duas horas do festival, mas foi suficiente pra definir pelo menos em mim meu gosto musical de uma vez pra sempre, não me canso de dizer.

Fecha parêntese )

Mas o negro que sob ao palco empunhando uma fender branca, tocando invertida pois é um canhoto, estava ali pra nos mostrar ainda que afinal, uma guitarra não é apenas um instrumento e sim uma usina de sons que pode nos transcender numa emoção estética muito além da arte da música.

Numa torrente de acordes identificamos o Hino Nacional Americano, com cada frase terminando num longo acorde imitando bombas caindo e explodindo.

Que mensagem magnífica aquele jovem negro nos deixa ao fim do festival !

Era apenas ele, Jimmy Hendrix !

Saímos do cinema muito além da madrugada caminhando tranquilos, passando assim pela famosa ponte do Poeta , tentando entender o impacto de tanta beleza num espaço de apenas duas horas.

Quantos como eu terão tido o mesmo “batismo” ?